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O Livro Vermelho e a Imaginação Ativa - Uma Viagem ao Inconsciente

Carl Gustav Jung


Foi editado em meados deste ano um livro inédito de Carl Gustav Jung (1875-1961), chamado ‘O Livro Vermelho’ que tem como verdadeiro título 'Liber Novus' (Livro Novo) escrito entre 1914 e 1930 que consiste em uma viagem exploratória pelo inconsciente e nunca havia sido divulgado ao público fora do círculo de amigos de Jung.
O livro no formato ofício com uma capa de couro vermelha, conta com um caderno iconográfico com imagens e várias ilustrações que lembram os manuscritos com iluminuras medievais assim como pinturas feitas pelo próprio Jung.
Depois da morte de Jung, em 1961, o volume permaneceu em mãos de seus familiares, que se negaram a autorizar sua publicação e, inclusive, permitir o acesso a estudiosos, antes de finalmente concordar com sua divulgação.
O livro é produto de um método introspectivo desenvolvido por Jung e conhecido como "imaginação ativa".
Em suas páginas, o autor reproduz o resultado dessa exploração interior mediante palavras e ilustrações.
Muitos dos desenhos pintados por Jung são figuras mitológicas e mandalas, ou seja, diagramas simbólicos circulares utilizados pelo hinduismo e budismo.
Jung buscou traduzir seus sonhos e fantasias em símbolos e formas gráficas contemporâneas, incluindo os diagramas circulares tibetanos.
A partir da experiência do "Livro Vermelho", que, depois da morte de Jung passou boa parte fechado num cofre forte de um banco suíço, o psicólogo desenvolveu sua teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo.

O livro vermelho foi uma tentativa de elaborar as experiências de imaginação ativa de Jung.
O que ele fez de forma cuidadosa e atenta, produzindo imagens belíssimas, e as narrativas (em algumas partes) em caligrafia gótica, ao longo de 16 anos.

As experiências da imaginação ativa devem fazer sentido para quem as vive.

O livro vermelho mostra, sobretudo, a seriedade com qual Jung lidava consigo mesmo.
O trabalho que teve com o próprio inconsciente – e o cuidado de elaborar suas experiências no livro vermelho, mostra sua coerência.

O livro vermelho é uma testemunha do que Jung suportou, e nos ajuda a compreender porque ele é tão respeitado.

É difícil definí-lo em poucas palavras.
Segundo Jung, este havia sido: “a minha mais difícil experiência”.
O mergulho dentro de si.



Os anos onde eu capturei as imagens interiores foi o mais importante período da minha vida.
Todo o restante [da minha obra] derivou daquilo.
Começou naquele período, e os detalhes posteriores são quase sem importância.
Minha vida inteira consistiu em elaborar o que irrompeu do inconsciente e inundou-me como um fluxo enigmático que ameaçou me quebrar.
Aquilo foi o tema [para minha obra] e material para mais de uma vida.
Todo o restante foi apenas a classificação objetiva, a elaboração científica e a integração na vida. Mas o início numinoso, que continha tudo, foi naquele então.

Estas foram as palavras de Jung a respeito de Liber Novus.

De 1914 a 1930, o psicanalista ouviu vozes e dialogou com elas na casa familiar de Sehestrasse, a rua do Lago na suíça Küssnacht.
Artista plástico de talento, anotou em óleos as suas muitas inacreditáveis visões, todas as que ele jamais procurara afastar, em um processo que designou “imaginação ativa”.

Seres míticos, serpentes, mandalas e nuvens vermelhas, em representações soberbas, sobrepunham-se à cidade tranqüila.
As páginas lembravam as de um códice medieval, e Jung misturava as línguas com que designava suas iluminações.
O latim, o grego e o alemão vinham mesclados em uma escrita gótica que percorria as páginas como se um monge copista as tivesse produzido.
Não é, nem de longe, um livro comum: trata-se de uma obra de arte.

Jung não apenas escreveu sobre como também nos legou um registro pictórico do "confronto", com belíssimas e perturbadoras ilustrações onde motivos nórdicos, hindus e de diversas outras culturas misturam-se em uma atmosfera alucinante.
Cada página é um convite para a investigação lenta e deliciosa dos detalhes da obra.

O inconsciente coletivo, os arquétipos, o processo de individuação e outros conceitos junguianos estão esboçados nas impressionantes páginas deste livro que, mesmo sem nunca ter sido publicado, já pode ser considerado um dos mais influentes do século XX.

Todas as grandes obras da tradição ocidental compõem o universo cultural de Jung e o influenciaram de certa forma.
É possível perceber grandes influências na composição de O Livro vermelho: Zaratustra, de Nietzsche, A divina comédia, de Dante, Fausto, de Goethe.
Mas o Líber novus é novo e originalíssimo tanto na forma e apresentação quanto no conteúdo.

Enquanto Nietzsche apregoou a morte de Deus, uma nova ética, a “transformação de todos os valores”, O Livro vermelho traz a novidade do renascimento da divindade interior, da experiência pessoal pela transcendência das instituições.

Enquanto Dante realiza uma viagem interior de aprofundamento, personificando em Virgílio um guia para o mundo dos mortos, Jung tem múltiplos guias, sendo o mago Filemon – aquele que centraliza o conhecimento intuitivo – o maior de todos.

Poderíamos dizer que o livro é um constante oscilar entre os dois tipos de pensamento: o onírico e o mitológico (do inconsciente) e o racional (típico da consciência).
A experiência intuitiva criativa aparece em forma de personagens e histórias.
Esses processos intuitivos são, em um segundo momento, elaborados pela mente racional consciente em busca de um sentido simbólico que sintetize ambas as formas de pensar.



Tomemos, por exemplo, entre as inúmeras cenas do livro o encontro de Jung com o herói mitológico Izdubar.
O psiquiatra suíço caminha em uma de suas fantasias em direção ao Oriente, por um longo trajeto que parece não ter fim.
A paisagem tem horizontes que se perdem na distância.
Subitamente, aparece ao longe um vulto enorme, de proporções gigantescas.
Jung sente um profundo temor e respeito pela figura primitiva, semelhante a um herói antigo, com vestes típicas das sociedades tribais.
Indagado sobre quem é, o herói diz ser Izdubar, o poderoso, e que se dirige ao Ocidente para conhecer os países da terra longínqua e seus habitantes.
Jung diz que vem do Ocidente, fala das pessoas, suas cidades e sua capacidade de se deslocar em máquinas voadoras para terras distantes.
A partir daí se desdobra um diálogo entre Izdubar, um ser cheio de crenças, temente ao poder do mito e da magia, e Jung, possuidor do pensamento racional e científico.
Izdubar é tomado pelo medo do poder da razão, torna-se extremamente fraco e teme morrer, aniquilado pela racionalidade do ser de estatura diminuta.
Já Jung teme pela morte iminente de Izdubar.
O que se passa a seguir é comovente: para salvar o interlocutor, o psiquiatra entoa encantamentos védicos da antiga Índia, palavras mágicas de restituição de vigor.

O herói da mitologia se torna então diminuto e, surpreendentemente, é guardado por Jung em um ovo.
Depois de certo tempo é restaurado ao seu tamanho natural, a salvo e revigorado.

Temos aqui não a morte de Deus anunciada por Nietzsche, mas a assimilação dos deuses antigos e seu renascer sob nova forma simbólica de experiência psicológica subjetiva.

A quase morte do deus e sua restauração em forma simbólica, um processo de integração do pensamento mitológico do inconsciente pela razão onisciente, é de uma sutileza tão grande e uma profundidade tão difícil de expressar que Jung julga as palavras insuficientes para transmitir o que ocorre.

Por isso, recorre nessa parte do livro ao recurso da linguagem não verbal de poderosas pinturas coloridas, imagens de grande densidade de significado: mandalas, cores e os mais diversos símbolos.

Um Jung surpreendente – o artista plástico – revela-se aqui em pinturas de grande beleza estética e densidade de significado.

Esse modelo de comunicação, o uso de metáforas poderosas aliadas a ilustrações igualmente significativas, é absolutamente pessoal e revolucionário e que a psicoterapia também é “uma cura pela não fala”, pelas técnicas expressivas diversas, não verbais.

Outro aspecto do maior interesse é o nome do deus: Izdubar.
Trata-se do antigo nome, depois corrigido, do herói sumeriano Gilgamesh, personagem do antiquíssimo mito Gilgamesh, rei de Uruk.

Jung teve conhecimento, e não há dúvida disso, de que o nome histórico Izdubar havia sido corrigido para Gilgamesh em textos anteriores ao O Livro vermelho.
Por que manteve a palavra Izdubar?
Porque foi sob esse nome que a entidade mitológica se revelou a ele – e isso demonstra que as diversas figuras históricas, bíblicas e mitológicas que povoam sua obra não são os personagens que conhecemos dos livros clássicos e da Bíblia, mas experiências internas de Jung personificadas.

Ainda é cedo para tentar prever todo o efeito que O Livro Vermelho terá sobre a avaliação e o conhecimento das ideias do criador da psicologia analítica.
Mas conhecendo-o agora, um século depois de ter sido iniciado, deve-se lamentar ele não ter sido antes revelado aos estudiosos junguianos e ao público em geral.

O Livro Vermelho detalha a experiência única de entrar em relação com o que Jung chamou de Self, e em épocas anteriores foi referido como Deus, mas é ao mesmo tempo muito impessoal, e realmente universal.

O livro é a resposta de Jung para Assim Falou Zaratustra e de proposição de Nietzsche, que para o homem moderno, Deus está morto.

A resposta é que Deus não está nem morto nem para ser encontrado em recipientes religiosos, nacionais ou políticos, mas é para ser descoberto.



O Livro Vermelho desencadeia Jung, o Poeta, o Pintor Jung, Jung o Profeta, e Jung, o Explorer xamânico e Revelador das profundezas.
O Livro Vermelho demonstra a personalidade extraordinariamente grande que Jung foi, e sua importância cultural para o nosso tempo.

O Livro Vermelho demonstra, magníficamente, as palavras poéticas, de cortar a respiração, imagens inesquecíveis, nada menos do que o processo de auto-transformação, de individuação.

Como diz Jung, "o significado supremo é o caminho, o caminho, a ponte para o que está para vir."

Para apreender as fantasias, conta Jung em suas memórias, ele partia muitas vezes da representação de uma descida até as profundezas cósmicas.
Em uma dessas ocasiões, ao pé de um alto muro rochoso, viu duas figuras: a de um homem de barba branca e a de uma bela jovem.
Abordou-os como se fossem reais e escutou o que lhe diziam.
O idoso lhe contou ser Elias, o profeta.
A moça, Salomé, era cega.
Elias assegurou-lhe que ele e Salomé estavam ligados por toda a eternidade.
Vivia com eles uma serpente negra que se inclinava na direção de Jung.
De Elias, nasceu uma das figuras centrais deste Livro Vermelho, Filemon, como Jung o denominou.




Sua imagem aparecera primeiro em um sonho.
Era um velho alado com chifres de touro.
Trazia um feixe de quatro chaves, uma das quais estava em sua mão como se fosse abrir uma porta. As asas se assemelhavam às do pássaro martim-pescador.
Dois dias depois de pintar essa representação, Jung viu um martim-pescador morto em seu jardim, à beira do lago.

Em Filemon, o psicanalista detectou um conhecimento das coisas que se fazem por si mesmas, com vida própria, já que aquele ser não representava o eu.

A partir desta descoberta, Jung aventurou-se na visão do inconsciente de todos, contra o inconsciente de um, aquele de Freud.

O Livro Vermelho, sabe-se agora, é um livro de revoluções.



Edição disponivel em Português na Livraria Vozes .

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