POR ANTONIO MARTINS
06/06/2014
Capazes de mobilizar multidões na Copa, sem-teto não querem
confronto com governo. Estão sendo empurrados para isso, em novo sinal do
impasse político brasileiro.
Por Antonio Martins
Um golpe de sorte e alguma capacidade de enxergar cenários.
Graças a estes fatores, Guilherme Boulos – coordenador nacional do Movimento
dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) – abriu ontem (5/6) a série de entrevistas em
vídeo que Outras Palavras fará, em parceria com o Estúdio Fluxo, sobre temas
nacionais e internacionais relevantes [a entevista pode ser vista, na íntegra,
aqui]. O MTST é a bola da vez, na grande onda de mobilizações sociais iniciada
em junho do ano passado. Na quarta-feira (4/6), mobilizou 25 mil pessoas, pelo
direito a moradia. Rodeou o “Itaquerão”, onde, em seis dias, começa a Copa do
Mundo.
Articula-se em todo o país. Em São Paulo, ocupou enormes
terrenos urbanos, antes entregues à especulação imobiliária. Neles vivem
(acampados em tendas), organizam-se e se politizam cerca de 30 mil pessoas. O
que Boulos expôs, na entrevista a Bruno
Torturra (do Fluxo) e a mim, é essencial para compreender a potência atual do
movimento. Também ajuda a compreender os limites que o governo Dilma impôs a si
próprio – e a necessidade de rompê-los.
Três características centrais distinguem o MTST, na vasta
galáxia de movimentos que se enxergam como herdeiros das jornadas de junho. A
primeira é a ênfase no trabalho de base, consequência de uma avaliação particular
sobre a conjuntura política do Brasil. Ao contrário de muitos, os sem-teto não
julgam que estejamos às vesperas de derrubar a ordem capitalista. Reconhecem a
importância dos protestos do último ano – mas também seus limites. Grandes
transformações, adverte Boulos, só são
possíveis com envolvimento ativo das maiorias.
Não basta convencer
pequenos grupos, os “60 ou 70 mil mais mobilizados”. A fase, portanto, não é de
enfrentamentos abertos, mas de “acumular forças”.
Terminada a fase dos grandes protestos, em julho de 2013, as
ruas esvaziaram-se. Alguns grupos tentaram compensar este vazio radicalizando
artificialmente as manifestações – o que as desgastou junto a parcela crescente
da população. Os sem-teto adotaram outra tática. Preferiram voltar-se para as
periferias. Lá, prossegue o líder do movimento, deu-se algo que nem as classes
médias, nem a mídia, enxergaram. O desconforto provocado pela especulação
imobiliária converteu-se em desejo de agir. A vitória na redução da tarifa de
ônibus “funcionou como gatilho: sinalizou que a luta social poderia alcançar
conquistas”, diz Boulos.
“Não fomos nós que estimulamos as ocupações de terrenos. Era
a população que nos procurava”, prossegue ele. Criado há quinze anos – em seu
início, como uma espécie de “braço urbano” do MST –, o MTST havia acumulado
experiência para atender ao chamado. Ao invés de se lançar a enfrentamentos
egoicos com a polícia (e as vitrines de bancos…), articulou desejos coletivos.
O resultado apareceu rapidamente.
No final de novembro começava, na Zona Sul de São Paulo, a
Ocupação Nova Palestina. Reuniu 8 mil famílias e tem mais 2 mil na lista de
espera. São “trabalhadores em busca de alternativa ao aluguel, que passou em
poucos anos de R$ 300 para R$ 800, sem que o salário tenha subido de modo
proporcional, explica o líder dos sem-teto. Têm, nas ocupações, uma escola.
Organizam-se em Grupos de Trabalho, para cuidar da alimentação, segurança e
limpeza. Realizam assembleias periódicas. Debatem e agem. Em 29 de abril,
ocuparam a Câmara dos Vereadores, para exigir que o Plano Diretor de São Paulo
ampliasse a possibilidade de criar Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)
para construção de moradias populares.
A segunda característica distintiva do MTST é sua postura
diante do poder. Depois de junho, e a exemplo do que ocorre entre movimentos
como o Occupy e os Indignados espanhois,
tornaram-se frequentes, nas manifestações brasileiras, ataques genéricos contra
o Estado. Seriam todos os governantes iguais? Estaríamos num momento em que é
possível nos voltar contra eles em bloco?
O MTST tem uma visão diferente – e bastante sofisticada.
Boulos vê o Brasil num impasse. Durante
dez anos, diz ele, os governos Lula e Dilma ampliaram direitos sociais sem
incomodar os poderosos: “o bolo crescia, era possível aumentar a fatia de
todos”. Nos últimos anos, a receita desandou. Num cenário internacional mais
difícil – inclusive com desaceleração da China, hoje principal importadora de
produtos brasileiros –, a economia está estagnada. Seria hora “da redistribuição
efetiva de renda” e de “mudanças estruturais”, como a Reforma Política e a
Reforma Tributária. Dilma hesita temerosa de romper os laços do governo com
setores do grande capital – banqueiros, empreiteiras, indústria
automobilística, por exemplo. A ponto de o líder dos sem-teto ter dito, na
entrevista, que não considera de esquerda o atual governo.
Isso não o leva, porém, a igualar o PT aos partidos que
representam as velhas elites. Coerente com sua estratégia de acumular forças,
Boulos busca coroar a impressionante
onda de mobilizações dos sem-teto com uma vitória. Ainda que seja parcial, sabe
ele, esta conquista pode ter enorme efeito simbólico. Significará interromper a
maré de especulação imobiliária, segregação social e alta opressiva dos preços,
que marca as metrópoles brasileiras desde a virada do século.
E aqui surge o terceiro traço particular deste movimento que
mantém acesa a chama das jornadas de junho. Ele não se limita a criticar a Copa
do Mundo, nem a fazer reivindicações genéricas e intangíveis (“Se não tiver
direitos, não vai ter Copa”). Formulou uma pauta concreta de exigências. Ela é,
ao mesmo tempo, viável e transformadora. Por isso, coloca o governo Dilma não
diante de uma crítica retórica (ainda que estridente…), mas em face de um dilema
real.
São três os pontos que o MTST persegue, para que o governo
sinalize que o legado da Copa não se limitará a um punhado de obras e milhares
de desalojados. Primeiro, um controle público dos preços dos aluguéis urbanos.
É algo que interessa tanto ao sem-teto quanto à classe média. “Já houve no
Brasil – frisa Boulos – inúmeras leis de regulação das relações entre
proprietários e inquilinos. A primeira delas veio no início do século passado,
em resposta à greve geral de 1917, em São Paulo. A liberdade total para
especular veio dos governos neoliberais e foi mantida, até o momento, por Lula
e Dilma. Está na hora de revê-la, o que exige uma nova lei.
As duas reivindicações seguintes são o fim da atual onda de
despejos (o MTST quer instalar, na secretaria de Direitos Humanos do governo
federal, uma comissão que acompanhe as decisões judiciais contra moradores, dê
visibilidade a seu caráter muitas vezes absurdo e permita abrir negociações) e
uma mudança substancial no programa Minha Casa, Minha Vida. Aqui, entram
aspectos que a população desconhece.
Em seu formato atual, explica Boulos, o programa é um prêmio
para as empreiteiras e o mercado imobiliário, muito mais que para as populações
sem casa. Foi concebido na esteira da crise financeira de 2008, que ameaçava
destroçar o setor de construção no Brasil. Suas regras primitivas denunciam
esta deformação.
A empresa que ergue um conjunto habitacional é remunerada,
pelo governo federal, por apartamento entregue – não importando qualidade,
tamanho ou localização. São R$ 76 mil por unidade, a partir de 39m². Não há
estímulo algum para oferecer espaço mais amplo (as famílias são muitas vezes
numerosas) ou prédios próximos à infraestrutura do centro. Vigora a lei da
selva. Quando mais barato o terreno (portanto, mais distante e sem
benfeitorias), e mais rude a construção, maiores serão os lucros do empresário.
Não por acaso, até os grupos gigantescos que empreitam obras públicas – como
Camargo Corrêa e Odebrecht – abriram um ramo no Minha Casa, Minha Vida.
O MTST quer um critério menos tosco. Por que não estabelecer
faixas de remuneração aos construtores, segundo a localização do conjunto
habitacional, tamanho e qualidade da obra?
Por que não quebrar o quase-monopólio das construtoras,
abrindo espaço para que os próprios movimentos sociais construam as habitações?
Um conjunto que os sem-teto erguem no momento, na Grande S.Paulo, terá
apartamentos de 63m² e três dormitórios. Porém, pelas regras atuais, as
construtoras privadas têm 66 vezes mais recursos federais, do Minha Casa, Minha
Vida, que os movimentos por habitação.
Boulos reconhece: o governo federal não tem como resolver,
até a Copa, a questão dos alugueis. Pode fazer sinalização. Por exemplo,
anunciando uma Medida Provisória, ou Projeto de Lei. Mas em relação aos
despejos, e às mudanças no Minha Casa, Minha Vida, há espaço. Que pesará mais,
para Dilma? A possibilidade de abrir diálogo com um movimento social emergente,
cujas reivindicações expressam parte do resgate da dívida social brasileira? Ou
o compromisso com o círculo de interesses que gira em torno de empreiteiras,
políticos e lobbies?
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