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O rio que desceu a Paulista já mudou o país


O noticiário borbulha de recuos e dúvidas 'da base' em relação à agenda de arrocho, vendida até domingo como 'salvação da lavoura'.

por: Saul Leblon


O que era verdade no Brasil até sábado, deixou de sê-lo a partir de domingo.
 
Um banho de rua renovou a agenda da nação.
 
O levante de 100 mil pessoas contra o golpe desautorizou a soberba conservadora e sacudiu a letargia de setores progressistas.
 
Gigantesca no tamanho, ampla na pluralidade e democrática nas bandeiras, a mobilização que tomou conta de São Paulo depois de o governo ter tentado proibi-la, reafirmou a experiência social: nas encruzilhadas da história, os fatos caminham à frente das ideias.

Hoje, a ‘naturalização’ do golpe na mídia cedeu lugar à discussão de uma viabilidade difícil, vinculada ao êxito improvável de um leque de medidas antissociais postas em xeque pela rua.
 
O protesto mudou o país pautado pela mídia, reordenou fatos, naufragou versões, lavou a poeira da prostração, desmentiu a correlação de forças pró-golpe, inoculada pelo colunismo isento.
 
Da avenida icônica do capitalismo brasileiro, a correnteza percorreu cinco quilômetros até o estuário popular do Largo da Batata, na zona oeste da capital, onde o terror uniformizado do PSDB de São Paulo tentou substituir a política por porrada.
 
Perdeu duplamente, como polícia e como política.
 
A estética de uma tropa de ocupação esmagando o anseio democrático pacífico informa melhor sobre a natureza de quem governa do que o incansável jogral do poder e da mídia.
 
O chanceler Serra terá dificuldades crescentes na escalada que se prenuncia para convencer de que não é o punho de renda de uma usurpação violenta do poder.
 
A desmenti-lo emerge a força de novas narrativas que saíram da rua para redesenhar a percepção interna e internacional do país.
 
Quais?
 
Em primeiro lugar, a que desmentiu o divisor de águas mais geral, que dava o jogo como decidido.
 
Não está.
 
O golpe de mão de 61 senadores que se avocaram mudar o pacto da sociedade sem consulta-la não resolveu, antes agravou os conflitos da delicada transição de desenvolvimento vivida pelo Brasil.
 
Parte expressiva da sociedade recusa a tutela não solicitada.
 
Em segundo lugar, o caudal de domingo esfarelou a tese conservadora de que ‘apenas’ simpatizantes do PT e de Dilma não aceitariam ‘a solução constitucional’ cometida no dia 31 de agosto.
 
Definitivamente, é maior que isso.
 
A indignação que verteu para ruas e avenidas no domingo, drenou geografias sociais e políticas bem mais amplas: mais para máxi do que para o ‘míni’, do chanceler; mais para os cem mil, do que para os ‘40 vândalos’, do presidente usurpador.
 
O erro conservador não se limita ao cálculo das proporções.
 
A terceira revelação trazida pelas águas da história toca um ponto crucial.
 
A reportagem de Carta Maior tem chamado a atenção para ele, um fenômeno silencioso mas progressivo nas manifestações contra o impeachment: o afluxo de extratos de classe média mais estabelecidos e de meia idade para a rua.
 
Neste domingo, o que era silencioso ganhou voz e peso de um protagonista tão marcante quanto a presença da juventude e das forças populares que tomaram a Paulista.
 
E isso não é pouco.
 
Na verdade, é muito.
 
Significa que a régua de corte da rejeição à ruptura constitucional de 31 de agosto subiu as escadarias da pirâmide de renda e refletiu o teto de tolerância de um segmento formador da opinião pública.
 
Gente que ainda lê e assina jornais, por exemplo, vazou seu inconformismo para a rua, entre outras razões, talvez, porque os jornais que lê, assina ou assiste já não contemplam mais suas convicções democráticas.
 
Era preciso leva-las diretamente ao asfalto.
 
O passo foi dado para além da hesitação, do conforto e da cautela.
 
Há desdobramentos e eles remetem ao passo seguinte da luta contra o golpe.
 
O rio da história que desaguou no Largo da Batata, sugestivamente, não defendia esse ou aquele partido, essa ou aquela liderança política.
 
Nos cinco quilômetros de percurso do planalto à várzea do Pinheiros, gentilmente assombrados pela cavalaria motorizada de Alckmin em arranques valquirianos, não se ouviu outra palavra de ordem, exceto uma causa.
 
A mais devastadora de todas à sobrevivência de um golpe de Estado: o clamor por eleições diretas.
 
Quarta novidade derivada dessa: a largueza desse jorro encorpa e dá pertinência histórica à proposta do ex-presidente Lula, apresentada dois dias antes da manifestação, na reunião do Diretório Nacional do PT.
 
Qual seja, opor ao golpe uma Frente Ampla à moda uruguaia, que comporta partidos, centrais, movimentos, personalidades, intelectuais, juristas e artistas de todos os matizes e colorações progressistas e democráticas da sociedade.
 
Entenda-se por isso que a maior liderança política do país e principal esteio do PT não reivindica a direção da resistência ao golpe. Propõe-se a participar dela em regime colegiado com outras forças credenciadas pela rua e pelo mandato da trajetória e da biografia.
 
Finalmente, mas não por último: a consolidação e a expansão desse escudo dificultará, sobremaneira, a promessa do golpe ao mercado de curar os desequilíbrios fiscais –a ‘gastança petista--  agravando desequilíbrios sociais e humanos que compõem a secular desigualdade brasileira.
 
O noticiário das últimas horas está cravejado de recuos, dúvidas e sinais de defecção ‘da base’ em relação à agenda de arrocho, vendida até domingo como a salvação da lavoura nacional.
 
A dissipação coloca Golpista num corner entre a sobrevivência política da sua ‘base’ e a  ganância imediatista do mercado.
 
Esse garrote tem um calendário apertado de ajuste das tarraxas.
 
A escória parlamentar que ‘legitimou’ o assalto ao poder em aliança com a mídia, o dinheiro e o judiciário é o flanco mais imediatamente exposto dos quatro.
 
Primeiro, nas eleições municipais de outubro próximo; e, em 2018, em um sortido cardápio de escrutínios para presidente, governadores, senadores e deputados.
 
Aceitará ir para a linha de frente do matadouro, decepar direitos e escalpelar conquistas, como exigem o PSDB e a mídia --que condicionam o apoio à entrega do serviço, e o mercado financeiro, que ameaça revogar o único lastro do governo, a ‘melhora’ das expectativas?
 
O rio que desceu a Paulista corroeu e continuará a erodir os barrancos dessas margens frágeis.
 
O conflito entre a rua e a agenda da qual o golpe é refém é inconciliável.
 
O governo-abutre não reserva qualquer espaço à principal tarefa do desenvolvimento, que é justamente civilizar o mercado pela universalização de direitos, como aspira a cidadania brasileira.
 
O que se preconiza é de uma violência inexcedível em regime democrático e muito provavelmente incompatível com ele.
 
Uma esmagadora engrenagem foi acionada para tomar de volta tudo aquilo que transgrediu os limites da democracia formal, e que o ciclo iniciado em 2003, com as limitações sabidas, exacerbou em um resgate social inconcluso, mas transgressivo para a tolerância secular da plutocracia.
 
Um paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente, incompatível com a Constituição Cidadã de 1988, é a panaceia vendida agora como fatalidade à nação.
 
O que se ameaça é regredir aquém do ciclo da redemocratização, que contestou a eficiência econômica construída à base de ditadura, tortura e censura.
 
Talvez tenha sido aí que se rompeu o limite do tolerável para a classe média não petista, crítica –e até muito crítica-- dos erros recentes do PT.
 
Mas que deixaria a condição de indiferença quando ficou claro que o legado da geração que –direta ou indiretamente-- devotou a juventude à luta contra a ditadura, atravessou a idade adulta na campanha das Diretas-já e não aceita viver em um país aquém das estacas fincadas ali, estava sendo triturado em nome de uma restauração tardia, anacrônica e globalmente contestada da agenda neoliberal dos anos 90.
 
Esse sentimento ecumênico dá à bandeira da Frente Ampla o requisito de um protagonista social que a conduza.
 
A semente que está na rua já venceu a prostração, a indiferença e o conforto das delegações e desabafos digitais.
 
Cada vez mais, cobrará coerência organizativa em todas as instâncias democráticas, a partir de agora.
 
A das eleições municipais, inclusive.
 
A inércia ainda suscita cenas como a do recente debate entre candidatos a prefeito de São Paulo, quando Erundina e Haddad realçaram mais as divergências – justas, respeitáveis-- do que a premente e delicada convergência que estão desafiados a ajudar a construir.
 
A inércia é compreensível.
 
Mas a ficha precisa cair.
 
A determinação central da vida brasileira mudou.
 
Passa da hora de o campo progressista superar sectarismos e prioridades corporativas para enxergar a floresta além da clareira particular de cada projeto secundário.
 
Forças incontroláveis buscam atrelar destino da nação a uma disjuntiva em que, para vencerem, a sociedade terá que ceder a cidadania, renegar o passado, renunciar ao futuro, divorciar-se da esperança.
 
Acontecerá se o escudo progressista piscar e se dividir.
 
O interregno neoliberal implantado pelo PSDB nos anos 90 foi um ensaio disso. Só possível dissimulado na catártica operação de guerra de um país unido contra a hiperinflação.
 
Nunca mais as urnas endossaram o lacto-purga da panaceia mercadista.
 
Derrotada em 2002, 2006, 2010 e 2014, a nova oportunidade só se apresentou agora – ainda assim para um golpe, a salvo das urnas.
 
Embala-a nada menos que a nitroglicerina acumulada pela sobreposição de um ciclo de desenvolvimento que se esgotou, associado a uma crise mundial capitalista, que se arrasta há oito anos. 
 
O prazo de capacitação para uma alternativa democrática é exíguo.
 
Mas ganhou seu protagonista encorajador nas manifestações do último fim de semana.
 
A Frente Ampla é o ponto de fusão disso. Seu desafio agora é dar ao ‘rio de domingo’ a vazão transformadora que magnetize a repactuação do país e negocie a retomada do desenvolvimento justo, ansiado pela maioria da sociedade

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