O golpe de Estado que confiscou o mandato da presidente Dilma
Rousseff e feriu de morte a soberania do voto, pedra angular da democracia
representativa, não se consumou no dia 31 de agosto, quando o Senado Federal,
prostrando-se de cócoras para ficar no mesmo nível da Câmara dos Deputados do
dia 17 de abril, votou o impedimento. A arquitetura do processo golpista
remonta ao final das eleições de 2014, quando o PSDB primeiro tenta eivar de
fraude o processo eleitoral, e em seguida, interpõe recurso junto ao TSE
visando à cassação da chapa Dilma-Temer, o que, não sabiam os tucanos naquele
então, poderá brevemente lhes trazer sérias dores de cabeça. Outra peça dessa
articulação golpista, que não foi obra dos céus nem produto do acaso, foi a
eleição de Eduardo Cunha (o líder efetivo do PMDB) e, na sequência, a
utilização da Câmara dos Deputados como instrumento de desestabilização do
governo. O presidente defenestrado da Câmara, líder do baixo clero e de seus
pleitos nada republicanos, não tinha estatura para ser sujeito nesse projeto,
não contasse, como efetivamente contou, com o apoio do PMDB e nele do seu
presidente Michel Temer, além dos partidos que se coligaram na oposição (PSDB,
DEM, PSB, PPS, PP etc.). Financiando a uns e a outros, e muitas vezes investindo
diretamente, atuaram as grandes corporações, como a FIESP – o grande clube dos
sonegadores de impostos – e a mídia, monopolizada política e ideologicamente:
os grandes jornais se reproduzem nos jornais de província, e o telespectador
assiste à rede Globo mesmo quando sintoniza a Bandeirantes ou a Record ou o
SBT, ou essa ou aquela emissora. A conspiração (que sempre contou com agentes
dentro do próprio governo) sai da escuridão quando o vice perjuro deixa à
mostra suas garras ao pretextar motivos para abandonar a coordenação política
do governo e ingressar, a partir daí abertamente, na conjuração. Registre-se: a
liderança do golpe é assumida à luz do dia pelo ex-coordenador político do
governo, vice-presidente da República e beneficiário direto do impeachment.
O primeiro
grande lance, porem, é desferido pelo STF, quando o ministro Gilmar Mendes
(sempre ele) concede liminar nos autos de mandado de segurança virtualmente
proibindo – um escândalo no presidencialismo – a presidente da República de
nomear o ministro chefe de sua Casa Civil.
Em breve, o
‘Diretas-já’ de 2016 poderá se tornar uma reivindicação popular de
consequências imprevisíveis.
Minoritária
no Congresso, acossada por um STF partidarizado, sabotada internamente sua
administração, a presidente Dilma tinha a governança seguidamente ferida. Com
esse pano de fundo caminhava na Câmara o pedido de impeachment. A longa
tramitação nas duas Casas, e, afinal, o decreto cassa tório no Senado Federal,
tanto quanto a campanha de imprensa e as mobilizações de rua, são peças de um
processo único e ainda não concluído, pois seu objetivo de longo prazo é um
governo antipopular e antinacional, no qual será possível reprimir a emergência
político-social das massas. O ponto de partida é o ‘ajuste’ imposto pela banca
internacional e operado pelo banqueiro goiano Henrique Meirelles, com o apoio
da Avenida Paulista.
Os
golpistas, tendo claro o objetivo final, adotaram uma metodologia de
implantação gradual, e não recuarão até terem completado a implantação do novo
regime. Não se deve, portanto, tê-lo (o golpe), hoje, como obra finda e
acabada. Trata-se de golpe de implantação peça a peça; trata-se de ‘golpe
continuado’, em operação contínua. Noutras palavras, muitas operações ainda
estão por surpreender os que não acompanham o processo histórico.
A
burocrática presença do ministro Ricardo Lewandowski na presidência da sessão
do Senado, e a liturgia barroca do ‘julgamento’ de cartas marcadas, tinham por
objetivo simplesmente passar para a opinião pública nacos de formalismo legal
encobrindo uma pantomima desde a origem carente de legitimidade. Nem a liturgia
era séria, nem os senadores são julgadores (de ‘juízes’ foram chamados pelo
presidente do STF) no sentido estrito do vocábulo, nem o STF é isento como não
se cansa de demonstrar o inefável ministro Gilmar Mendes.
O formalismo
vazio e a pompa démodé foram levados com extremo rigor, mas em vão, pois o país
sabe que a confirmação pelo Senado do impeachment anunciado com tanta
antecedência (e carente de requisito indispensável em tal processo, que é a
evidência de crime de responsabilidade, como exige a Constituição) consiste num
golpe de Estado, atípico, vestibular da regressão social que pede o Estado
policial.
As recentes
manifestações populares, a começar pela massiva concentração de São Paulo (100
mil? 80 mil pessoas?) no último domingo (4/9), antecipando as vaias ao
presidente de fato na Parada de 7 de setembro em Brasília e na abertura das
Paraolimpíadas no Maracanã, revelam que a população brasileira não apenas está
convencida de que Dilma Rousseff foi vitima de um golpe de Estado, como o
repele da forma a mais profunda e significativa. E rejeita o governo de seu
beneficiário.
O ‘Fora,
Temer’ percorre hoje o país como verdadeiro rastilho de pólvora e brevemente o
‘Diretas-já’ de 2016 poderá transformar-se numa reivindicação popular de
consequências imprevisíveis.
Esse
sentimento foi renovado, ainda no 7 de setembro, no tradicional ‘Grito dos
Excluídos’, transformado em ação contra Temer, com mobilizações populares,
movimentações de massa que se repetiram em quase todas as capitais do país. E
em todas elas, destacou-se um público majoritariamente jovem, aguerrido,
generoso, que, encontrando o caminho das ruas, dele não deverá afastar-se, tão
cedo, e muito menos de mãos vazias.
Nos seus
primeiros momentos pós-impeachment, Michel Temer era um presidente sem
liderança e desabonado de voto popular. Hoje, ainda mais impopular, é um
dirigente rejeitado, e assim, incapaz de realizar o governo para cuja
implantação o golpe foi dado. As medidas que lhe cobram como pagamento pelo
passe aumentarão esse fosso e essa rejeição, impondo-lhe a opção pelo Estado
policial – de que foi significativa, para quem quiser ver, a repressão brutal
da polícia de Geraldo Alckmin à manifestação ordeira e pacífica do domingo
paulistano.
A direita
brasileira não tem, jamais teve compromissos com a democracia, que muitas vezes
reivindica para poder destruí-la, como fez com o golpe de 1964. Da mesma forma,
essa direita jamais teve compromissos com a legalidade – basta lembrar 1954,
1955, 1961 e 1964 – ou com a ordem constitucional. Tampouco tem compromisso com
o processo eleitoral, que nega, quando não atende aos seus interesses, como
quando tentou impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e agora, quando rasga os
mais de 54 milhões de votos dados a Dilma Rousseff. A trajetória da direita, no
Brasil, em toda a nossa História, mas particularmente na República, está
vinculada a regimes de exceção e a golpes de Estado, e este em implantação é
apenas mais um, como a ‘ditadura constitucional’ que necessariamente implantará
para poder cumprir com seus objetivos.
A direita de
hoje é a direita de ontem e agirá como sempre agiu. Estamos apenas no começo do
drama.
Mas, ensina
a terceira lei de Newton (do movimento) que “a toda ação corresponde uma ação
contrária da mesma intensidade”. Ou seja, não há uma força isolada, mas sempre
uma interação. Assim na física como na vida social. A ação reacionária, com
suas ameaças, trouxe o povo de volta às ruas e o reconciliou com as lideranças
de esquerda, e, como se cumprisse um ofício pedagógico, está ensinando que a
ação é possível e necessária.
Não nos
esqueçamos, porém, de que a ação, a descoberta da possiblidade da ação, não é
tudo, embora importe em grande avanço. Ela cobra um salto de qualidade, que se
chama Organização.
Ademais,
como se cumprisse um ofício pedagógico, está ensinando que a ação não só é
possível como é necessária. A experiência do movimento social traz à tona, mais
uma vez, o imperativo da unidade e da política de frente conduzindo a ação.
Está, pois, colocada para as forças populares, para as forças sindicais, para
os assalariados de um modo geral e para a juventude – que retoma seu papel de
sujeito – a grande oportunidade da inadiável revisão de procedimentos e de
práticas, sem prejuízo da intervenção imediata. A crise de hoje questiona a
primazia do eleitoralíssimo sobre o processo revolucionário, e questiona o
pragmatismo como a melhor via de construção partidária.
Quando
nossos partidos farão a necessária autocrítica?
Os partidos
da esquerda organizada – que recém perderam o papel de condutores do processo –
têm, agora, a oportunidade do reencontro com as grandes massas. O contraponto à
ofensiva da direita pode ser o grande instrumento de politização das massas e
de retomada, pela esquerda, dos princípios da democracia plena.
Roberto
Amaral
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serpente sem casca ( da ‘crise’ à Frente Popular) pode ser adquirido através do
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Roberto
Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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em: www.ramaral.org
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