– 4 DE DEZEMBRO DE 2018
Ex-capitão
apagado e político medíocre, ele formou ampla base de apoio nos meios
militares. Ensino conservador nas Forças Armadas e anticomunismo “renovado”
ajudam a explicar por quê.
Por Adriano
de Freixo, em Teoria e Debate
A ascensão
de Jair Bolsonaro à Presidência da República tendo em torno de si, inclusive na
vice-presidência, um grupo palaciano formado por diversos oficiais-generais da
reserva que, até recentemente, ocupavam cargos importantes na estrutura das
Forças Armadas (FA) e contando com o voto e a simpatia da maior parte das
tropas, traz implícita uma questão de extrema relevância: como um ex-capitão,
de carreira militar apagada, reformado como decorrência de processos
disciplinares, com uma atuação pífia como parlamentar e que até não muito tempo
era visto com ressalvas e mesmo com desdém por boa parte das lideranças
militares, conseguiu angariar toda essa base de apoio nos meios castrenses?
Para a
compreensão desse fenômeno, dois pontos nos parecem fundamentais e é a partir
deles que procuraremos construir nossa análise:
1- o
revigoramento da ideologia anticomunista – bastante presente nas Forças Armadas
desde o século passado –, com nova roupagem e em perspectiva ampliada, entre
parte expressiva dos militares, de forma concomitante com outros setores da
sociedade;
2- o desejo,
implícito ou explícito, dos militares em retomar o protagonismo e o “prestígio”
perdidos – relacionando-se este último com o “reconhecimento” por parte da
sociedade da importância do estamento militar e da necessidade de dar a ele um
tratamento diferenciado –, em um momento de crise, no Brasil e no mundo, da
democracia formal e da representação política.
Sobre o
anticomunismo militar, pode-se dizer que remonta, pelo menos, à década de 1930,
quando em um contexto de transformações na sociedade e no Estado brasileiros,
de polarização ideológica e de profundas divisões políticas nos meios
castrenses – em especial, no Exército –, ele pareceu ser, para algumas
importantes lideranças militares do período, a ideologia capaz de unificar as
Forças Armadas e de acabar com suas dissensões internas. Assim, embora haja
quem defenda a ideia de que a ideologia comunista vai de encontro ao ethos
militar – devido à percepção de que ela se opõe aos dois princípios
organizacionais básicos da instituição castrense, a hierarquia e a disciplina –
e de que as Forças Armadas, defensoras por excelência do status quo, seriam
dotadas de um conservadorismo intrínseco, sendo o anticomunismo, portanto, algo
quase inato a elas, não se pode negar e/ou retirar a historicidade da
construção dessa ideologia anticomunista nas FA.
Logo, é a
necessidade de eliminar as disputas e divisões intestinas que aparece como
elemento central para a consolidação de um sentimento anticomunista – até então
difuso – nos meios militares. E nesse processo, a fracassada Revolta Comunista
de 1935 e a narrativa construída sobre ela pelas lideranças militares e pela
ditadura estadonovista (1937-1945) desempenharam um papel central. Não é à toa
que a “Intentona Comunista” tornar-se-ia um dos principais eventos rememorados
pelas Forças Armadas nas décadas seguintes, estando essas rememorações entre as
mais importantes cerimônias militares até o início dos anos 1990, contando
quase sempre com a participação do presidente da República.
Porém, o
expurgo definitivo das vozes dissidentes só se concretizaria com o golpe de
1964 e a subsequente ditadura civil-militar. Já nos primeiros anos do novo
regime, os militares alinhados com posições à esquerda – dos partidários do
reformismo nacionalista do PTB aos simpatizantes do Partido Comunista – foram
afastados, cassados e perseguidos, o que efetivou sobremaneira a consolidação
da hegemonia do pensamento conservador, em suas diversas nuances, no interior
das Forças Armadas.
Nos anos
finais da ditadura, durante a transição democrática, a preocupação central de
alguns dos líderes militares, como os generais Golbery do Couto e Silva e
Ernesto Geisel, foi a de preservar a instituição militar, dentro da lógica da
“distensão lenta, gradual e segura”, buscando prevenir “revanchismos” de
futuros governos civis e minimizar os desgastes causados nas Forças Armadas
pelo longo tempo à frente do regime ditatorial. Tal lógica permaneceria durante
os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), quando um bem
organizado lobby militar conseguiu manter uma série de privilégios para as
Forças Armadas na “Constituição Cidadã”, a mesma que abriria caminho, de um
lado, para o início de um maior controle civil sobre os militares, que se
articularia nas décadas seguintes, e, de outro, para o deslocamento das FA de
suas funções precípuas relacionadas à defesa nacional para maior atuação na
área de segurança pública e de garantia da ordem.
Nesse
contexto, marcado pela democratização em nível doméstico, pelo fim da Guerra
Fria e pelo triunfo da ordem liberal, assiste-se a uma gradual perda de
protagonismo dos militares, que se traduz tanto em restrições orçamentárias, e
na consequente redução dos investimentos no setor militar, quanto na ampliação
do controle civil sobre as Forças Armadas, que teria um importante ponto de
inflexão com a criação do Ministério da Defesa, no segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso, em 1999. Paralelamente, intensifica-se o uso de um
dispositivo previsto na Constituição Federal de 1988, as operações de Garantia
da Lei e da Ordem (GLO), com a crescente utilização das FA na segurança
pública.
Previstas na
Constituição Federal de 1988 e regulamentadas por meio de leis complementares e
decretos editados entre 1999 e 2010, essas operações são definidas, em seu
arcabouço legal, como “operações militares conduzidas pelas Forças Armadas, de
forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que têm
por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio em situações de esgotamento de instrumentos para isso” (Portaria
Normativa 186/MD/2014). Assim, foi tornando-se comum a utilização de
contingentes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na segurança de eventos
que contam com a participação de autoridades e chefes de Estado estrangeiros –
como a Rio 92 ou alguns encontros de Cúpula – ou que mobilizam grandes
multidões, como as visitas do Papa ou megaeventos esportivos.
No entanto,
foi a partir da década passada, justamente durante o ciclo de governos
petistas, que a presença das FA em atividades de segurança pública se tornou
mais constante, independentemente da ocorrência de grandes eventos, tendo
ganhado destaque durante o processo de criação das Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, a partir de 2008. A banalização das
operações GLO geraria inúmeras críticas por parte de diferentes segmentos,
sendo a principal questão de fundo o fato de que o aumento no número dessas
operações – bem como a forma como elas vêm sendo executadas – representaria um
desvio da atividade-fim das Forças Armadas, qual seja, a defesa do Brasil
contra inimigos externos. Somam-se a isso os questionamentos sobre o despreparo
das tropas para lidar com situações cotidianas da segurança pública e o ainda
existente déficit de cultura democrática dentro das FA, bem como a lembrança de
sua histórica atuação no combate ao “inimigo interno” – os acusados de
“subversão” – em períodos de repressão política.
Porém,
pragmaticamente, setores militares defendem as operações GLO como forma de
aumentar o orçamento das FA, bem como de adquirir novos equipamentos e
armamentos, mesmo reconhecendo que elas representam certo desvio da
atividade-fim castrense. Também acabou se tornando comum entre seus defensores
a utilização do argumento de que a experiência dos militares brasileiros na
Missão de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti (Minustah) teria
fornecido a eles algum know-how em operações de segurança pública e que,
portanto, eles reuniriam todas as condições de cumprir essa atribuição também
prevista no texto constitucional.
Nesse
contexto, após uma sequência de governos de centro e de esquerda, e em que a
democracia brasileira apresentava-se como definitivamente consolidada, parecia
que as FA tinham efetivamente se recolhido aos quartéis e se subordinado ao
poder civil. As boas relações com os governos civis, mesmo os petistas,
chegaram ao auge durante o segundo mandato de Lula, com Nelson Jobim à frente
do Ministério da Defesa. O aumento dos orçamentos militares, o reequipamento
das Forças Armadas, a recuperação de perdas salariais, a elaboração da
Estratégia Nacional de Defesa, o reconhecimento da indústria de defesa como
peça importante em um projeto nacional de desenvolvimento e a retomada de
projetos estratégicos, como o do submarino nuclear, levaram essas relações a um
ponto ótimo. Nesse momento, o anticomunismo parecia estar restrito a pequenos
grupos extremistas da direita castrense e a manifestações esporádicas de
militares de reserva, notadamente aqueles articulados em torno do Clube
Militar.
No entanto,
nos trinta anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988, uma
caixa-preta permaneceu intocada pelos governos civis: a educação militar. Mais
do que locais de formação técnica e de preparação para o exercício das funções
castrenses, as escolas militares são importantes espaços de socialização e de
transmissão dos valores institucionais para os futuros oficiais. Esse processo
se dá não somente através das disciplinas que compõem os currículos das
academias, mas também pela convivência com os professores e oficiais
pertencentes a gerações anteriores, que funcionam como os grandes responsáveis
pela formação dessa identidade institucional nos jovens cadetes.
A
intocabilidade desses espaços contribui para a existência de um déficit de
cultura democrática em parte expressiva das FA, que leva a situações como a
escolha do general Emílio Garrastazu Médici como patrono da turma de formandos
da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em 2010, ou o discurso
saudosista da ditadura ainda bastante comum entre militares mais jovens, que
não viveram aquele período ou que tiveram a maior parte ou a totalidade de sua
formação profissional já durante o período democrático. Isto também aparece de
forma muita clara nas críticas ao trabalho da Comissão da Verdade, instaurada em
2011, e na resistência em discutir de forma aberta e democrática o que ocorria
nos porões da ditadura. Todas essas questões acabam por remeter a outro
problema de fundo: a dificuldade das Forças Armadas em lidar com o controle
civil sobre elas, representado simbolicamente por um Ministério da Defesa, cujo
titular não pode ser um militar da ativa e que até o governo Temer, desde a sua
criação, vinha sendo exercido por civis.
De outro
lado, o avanço conservador dos últimos anos acabou por revigorar no interior
das FA o velho anticomunismo, agora travestido de uma nova roupagem: a crítica
ao “marxismo cultural” e às “estratégias gramscistas” que estariam sendo
implementadas pela esquerda brasileira desde o início do processo de
redemocratização. Não é coincidência que um dos livros mais vendidos da
história da Biblioteca do Exército seja A Revolução Gramscista no Ocidente, de
autoria do general de Brigada Sérgio de Avellar Coutinho.
Embora a
primeira edição da Bibliex date de 2012, ele foi publicado pela primeira vez
uma década antes pela Ombro a Ombro (nome de fantasia da Estandarte Editora e
Empreendimentos Culturais), uma pequena editora carioca de orientação
direitista que publicou, dentre outros, autores como Mohamed Ali Seineldin, o
coronel argentino que liderou sublevações militares contra os primeiros
governos democráticos pós-ditadura em seu país. Atualizando o histórico
anticomunismo das Forças Armadas com as teses sobre o “marxismo cultural” –
provenientes da extrema-direita estadunidense e difundidas no Brasil desde o
final da década de 1980 por Olavo de Carvalho –, associadas a uma interpretação
bastante particular do conceito gramsciano de “Revolução Passiva”, essa obra
rapidamente se tornou referência para amplos setores da direita militar e civil,
no bojo do crescimento do conservadorismo no Brasil.
Tais teses
vêm sendo replicadas, de forma explícita ou implícita, pelo grupo de generais
da reserva que desde a campanha se articulou em torno de Bolsonaro, muitos dos
quais ocuparam cargos relevantes na hierarquia das FA até recentemente,
inclusive nos governos petistas. Nessa visada, críticas a uma pretensa
“doutrinação esquerdista” nas escolas e universidades, bem como a necessidade
de uma “revisão histórica” sobre o período ditatorial, têm sido recorrentes em
entrevistas e manifestações públicas de nomes como os generais Aléssio Ribeiro
Souto, Rocha Paiva ou Hamilton Mourão, vice-presidente eleito. Sintomáticas
desse anticomunismo redivivo são as recentes declarações do comandante doExército,
general Eduardo Villas Bôas, tido como um moderado, sobre a necessidade de
rememoração da Intentona Comunista.
Paralelamente
a isso, ao mesmo tempo em que se intensificavam as operações GLO, começam a
ocorrer algumas tensões entre as Forças Armadas e o governo, durante os dois
mandatos de Dilma Rousseff, levando a um gradual esgarçamento das relações com
os militares. Além da já citada reação à instauração da Comissão da Verdade, em
2011, juntar-se-ia o mal-estar gerado pela assinatura pela presidenta, em setembro
de 2015, do Decreto nº 8.515/15, elaborado no âmbito do Ministério da Defesa
durante a gestão de Jacques Wagner.
Esse
decreto, dentre outras decisões, retirava dos comandantes das Forças Armadas e
transferia para o ministro da Defesa a competência de assinar atos relativos a
pessoal, como a transferência para a reserva, reforma de oficiais da ativa e da
reserva, promoção de oficiais e até mesmo a nomeação de capelães militares,
mexendo inclusive nos critérios de ascensão ao generalato. Para tentar minimizar
o estrago, uma semana depois da sua edição foi feita uma retificação que
estabelecia que o ministro da Defesa poderia subdelegar aos comandantes das
Forças Armadas tais competências. Mas isso não pareceu suficiente para setores
expressivos das FA, que também externavam preocupação com as discussões
existentes no governo sobre mudanças no ensino militar.
Essas
tensões manifestar-se-iam durante o processo que culminou no soft coup de 2016,
quando, apesar de uma neutralidade aparente, setores das FA flertaram
claramente com o esgarçamento da institucionalidade até seu limite, deixando
implícito seu apoio ao afastamento da presidenta legítima. Isso ficou visível
em algumas iniciativas, sendo talvez a mais explícita ocorrida durante o
período de interinidade de Michel Temer, quando a mais alta honraria do
Exército, a “Medalha do Pacificador”, foi concedida ao juiz Sérgio Moro –
personagem-chave na chamada “luta contra a corrupção” por liderar a operação
Lava Jato – e ao então ministro interino da Defesa Raul Jungmann. As
condecorações aconteceram no dia 25 de agosto de 2016, poucos dias antes da
confirmação do impedimento de Dilma Rousseff no Senado, no que pode ser
entendido como uma discreta tomada de posição por parte do Exército.
Convém
registrar também que mesmo antes da abertura do processo de impeachment pela
Câmara dos Deputados, o então vice-presidente já articulava pontes com as FA,
conforme noticiado pela mídia nos primeiros meses de 2016, através do general
Sérgio Etchegoyen, futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional
(GSI) da Presidência da República. O golpe contribuiria para o aumento do
protagonismo das Forças Armadas na vida nacional: a crise na segurança pública
em diversos estados e as vicissitudes de um governo impopular, aliadas ao
crescente clamor de segmentos da sociedade pela utilização das FA – com sua
popularidade renovada – contra o “crime organizado”, intensificariam a
utilização dos militares no combate a esse novo “inimigo interno”.
Em
contrapartida, o governo Temer faria uma série de concessões aos militares,
prestigiando-os e tratando-os como um estamento à parte da sociedade, com
privilégios e direitos específicos. Sintomaticamente, um dos primeiros atos do
novo governo, ainda na fase da interinidade, seria a revogação do citado
Decreto nº 8.515/15 e o restabelecimento das competências dos comandantes das
Forças Armadas. Além disso, os militares foram excluídos do controverso projeto
de reforma da Previdência apresentado pelo governo, bem como tiveram o atendimento
de antigas demandas, como a aprovação da Lei nº 13.491/17, que estabelece que
os crimes de morte contra civis cometidos por militares no decorrer de
operações GLO sejam julgados por tribunais militares e não civis.
Simultaneamente,
lideranças militares da reserva e mesmo da ativa – contrariando o código
disciplinar militar – passaram cada vez mais a se manifestar sobre questões
políticas, quase sempre em defesa de medidas de exceção implementadas nos
últimos dois anos, contribuindo para a percepção de que as Forças Armadas
procuravam se apresentar, mais uma vez, como um “poder moderador” a tutelar a
vida nacional. Uma das sinalizações mais contundentes nesse sentido se deu com
o já célebre tweet do general Villas Bôas, às vésperas do julgamento do habeas
corpus a Lula da Silva pelo STF, em abril deste ano, que para muitos pareceu um
sutil alerta à Suprema Corte contra a concessão da liberdade ao ex-presidente.
Tais acontecimentos contribuíram sobremaneira para pôr em xeque uma narrativa
que ganhou força entre setores da esquerda, notadamente no pós-golpe, mas que
peca por negar ou relegar a segundo plano o alto grau de coesão e
institucionalização das FA: a de que haveria uma pretensa disputa entre
militares “democratas” e “legalistas”, personificados em Villas Bôas, e
“golpistas”, que teriam em Etchegoyen a sua figura mais destacada, tentando
reeditar assim, a fórceps, a dicotomia “moderados x linha dura”, do período
1964/1968, que, por sinal, também vem sendo bastante relativizada pela
historiografia mais recente.
Dessa
maneira, a aproximação entre setores das Forças Armadas e Bolsonaro acabou
sendo o desdobramento lógico das questões que procuramos apresentar, de forma
sintética, ao longo deste breve artigo. E apesar de recentes declarações dos
generais Villas Bôas e Etchegoyen, em entrevistas à grande imprensa, de que a
eleição de Bolsonaro não significa a partidarização ou a politização das Forças
Armadas, é inquestionável que ela as coloca novamente como ator de relevância
na política doméstica brasileira. Resta saber até que ponto irá esse
protagonismo.
*Adriano de
Freixo é doutor em História Social pela UFRJ e professor do Instituto de
Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense – Inest/UFF.
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