Nietzsche, Spinoza e Jung: Reflexões sobre a Clínica de Psicoterapia
Escrito por Anita Rink
Categoria: Psicologia Clínica
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Nosso objetivo é correlacionar as atividades na Clínica de Psicoterapia e as teorias dos filósofos Nietzsche e Spinoza, a fim de enriquecer o trabalho na Clínica de Psicoterapia. Nosso modo de compreender o processo terapêutico não exclui o corpo físico, aliás, a percepção sensorial (senso-percepção) deve ser ativada, conscientizada e “educada” no processo terapêutico. Enquanto Nietzsche enfatiza o corpo como “uma superfície de inscrição dos acontecimentos, um lugar de dissociação do "eu", marcado de história”, Espinosa considera o corpo e a “alma” (ou psique) como uma mesma essência. Incentivar a consciência corporal nos seus múltiplos atravessamentos – historicidade e alma – ajuda o paciente a conectar partes de si mesmo e de sua constituição cultural, de modo a ampliar sua rede de possibilidades psíquicas, de modo a construir novas possibilidades da subjetividade coletiva e pessoal.
A sociedade ocidental foi formada com base no pensamento platônico, segundo o qual existem dois mundos: um concreto e habitado pelo homem cotidiano e outro mundo Ideal e inatingível. Deleuze (2006), diz que Platão, em seu mundo ideal, coloca a Idéia antes da experiência direta, como se existisse um pensamento de qualidade universal. Para Platão, o Mundo das Idéias deveria nos orientar em nossas práticas e buscas no mundo sensível, pois este último era considerado imperfeito. O mundo concreto e “defeituoso”, para Platão, era desprovido de meios para nos ajudar a alcançar o Ideal.
Baruch Spinoza foi um filósofo holandês do séc. XVIII, para o qual seria impossível o homem não fazer parte da natureza. Ao estruturar sua filosofia, ele elaborou importantes questões, tais como: 1. Por que as coisas existem? 2. Como se compõe o mundo? 3. O que somos nós no esquema das coisas? 4. Somos livres? Como devemos viver? Roger Scruton (1998), diz que na atualidade há uma relutância em enfrentarmos estas perguntas, o que explicaria nossa profunda desorientação. O citado autor acredita que nomear e descrever a atualidade como uma “condição pós moderna” é uma forma do ser humano se render e disfarçar suas ansiedades fundamentais. Segundo Scruton, Spinoza fez estas perguntas e empenhou-se em encontrar respostas para elas. Para isso, aprofundou-se em seu raciocínio e suas elaborações o levaram a perceber que a natureza seria tudo o que existiria e que o ser humano seria uma espécie de escravo desta mesma natureza.
Para Spinoza, corpo e alma têm uma relação de identidade: o corpo seria um modo finito da alma, e esta última seria uma substância infinita. Este filósofo da imanência acreditava que, se o mundo fosse visto pelo prisma da transcendência, esta negaria a própria essência humana, tornando-a impotente. Desta forma, corpo e alma devem ser vistos como imanência e não como transcendência. Spinoza acreditava que a emoção seria uma condição corporal e, ao mesmo tempo, uma ideia desta condição. Cada ideia na mente corresponderia a uma modificação corporal, portanto, a adequação das ideias, para Spinoza, seria um estado humano de potência (SCRUTON, 1998).
O filósofo acreditava ser possível alcançar a liberdade, mas para isso seria necessário aperfeiçoar as emoções, caso contrário estas instâncias poderiam dominar o sujeito. Segundo Spinoza, o esforço (conactus) do ser humano para conectar o corpo com a alma era uma necessidade e também significava conectar o corpo com as emoções e as idéias. Os diversos modos de expressão humana, seja pelo corpo, pelas idéias e pelas emoções podem ser vistos como múltiplos fluxos de uma mesma unidade. Para Spinoza, o esforço de se criar uma estreita cumplicidade entre mente e corpo seria uma afirmação da condição humana potente, o que resultaria em uma vida emocional saudável e alegre (SCRUTON, 1998).
Se por um lado Spinoza entende que o esforço seria a essência humana, por outro lado, ele compara o esforço ao desejo. Spinoza afirma a importância do desejo como o fundamento do esforço de conexão mental e corporal. Segundo ele, o desejo nos faz imaginar e agir, em unidade com o esforço, fortalecendo as “potências corporais”. Para ele, é através do esforço que forjamos nosso próprio ser e unificamos a mente com o corpo. O ser humano que não se esforça para comunicar o corpo com a alma, as emoções com as idéias encontra-se em uma condição de sedentarismo e afrouxamento das relações psíquicas; desta forma, as paixões podem solapar sua potência. Para Spinoza, cada pessoa poderia aprender um modo particular e singular de lidar consigo mesmo e de se expressar no mundo. Entretanto, o filósofo não determina de que modo este esforço deve ser feito. Spinoza renega todos os aspectos generalizantes e valoriza a experiência humana em suas múltiplas possibilidades de viver “no” e “com” o mundo (SCRUTON, 1998).
Friedrich Nietzsche
Friedrich Nietzsche nasceu na Alemanha em 1844 e inseriu na sua filosofia as idéias da época da Grécia antiga, anterior ao platonismo. O filósofo também valorizou a imanência e a potência, porém Nietzsche, concebe nossas práticas culturais e científicas fincada em bases platônicas centrada tão somente nas idéais. Para o citado filósofo, isto tende a desvalorizar o momento presente e os acontecimentos. No mundo ideal não existem as transformações que os acontecimentos propiciam, pois na idealização institui-se um valor absoluto. Para Nietzsche, a busca pela felicidade tem se relacionado com idéias redutivas e utilitaristas pautadas em um ideal unicamente racional, que reduz o homem a uma condição de máquina. Assim como Spinoza, Nietzsche condena o fato de interpretarmos as experiências pessoais e singulares por meio de juízos universais, o que seria uma forma de negação da vida. Ele afirma que a filosofia e diversas instâncias da ciência fazem uma interpretação pobre e reduzida do corpo. Por este motivo, os corpos seriam desqualificados e desvalorizados, sendo forçados ao silêncio. Uma das grandes contribuições da filosofia de Nietzsche seria a ideia de “transvaloração”: transformar os valores e equívocos que constituíram as verdades da nossa história e de nossa cultura.
Estas “verdades” se afirmam como absolutas e imparciais, porém se mostram compartimentadas e excluem a multiplicidade da existência.
Para unificarmos o corpo e a alma, segundo Nietzsche, primeiramente estes devem ser recuperados. Esta recuperação pode ser obtida através do desenvolvimento de modos de escuta e observação do corpo sem julgamentos pré-estabelecidos. Podemos entender estas ideias de Nietzsche no viés de uma prática clínica que possibilite a abertura a múltiplos caminhos, incluindo a valorização dos aspectos de conscientização da percepção sensorial pessoal. Esta valorização inclui não reduzir ou nomear as sensações como se fossem meros sintomas. Nietzsche diz que devemos chegar a ser quem realmente somos, porém isto não significa um “auto-conhecer-se” através de técnicas dadas, pois para ele o ato de nos conhecermos traz consigo a idéia de nem suspeitarmos quem somos (NIETZSCHE, 1979).
Nietzsche discorda da idéia de “renúncia pulsional” de Sigmund Freud, médico neurologista e fundador da psicanálise. A “renúncia pulsional” freudiana seria o homem ter escolhido estar sob a proteção de regras coletivas que o protejam contra sua natureza instintiva e pulsional. Para Nietzsche, a necessidade de que existam regras que possam proteger o homem contra esta natureza seria a própria origem do mal, tendo esta idéia se tornado inerente a toda nossa civilização. Para ele a “renúncia pulsional” seria também uma forma de negação do corpo, por isso, Nietzsche defende uma maneira de se viver a tensão dos instintos que escape de uma concepção binária de simples oposições.
Deveríamos, portanto, “viver o Eros”. Para os gregos Eros era um demônio, e para a psicanálise, ele pode se traduzir como instinto de vida e Id. Tanto os gregos como a psicanálise viam Eros como um ser construtivo ou destrutivo, e, também, ambas as coisas. O aspecto demoníaco de Eros pode ser o sexo, a ira, a raiva e a ambição de poder, por exemplo... Porém para Nietzsche viver o Eros seria também ter regras que se constituem na estética, pois Eros em sua vertente criativa cria suas próprias regras ao realizar sua expressão, que se pauta na estética. Portanto, o desejar de Eros produz normas e regulamentos próprios, pois necessita deles para se expressar no mundo (FEITOSA & BARRENECHEA, 2003).
Podemos considerar que, para Nietzsche e Spinoza, o desejo é a mola mestra da vida do homem no mundo. Para ambos existiria uma “estética do desejo, a qual instituiria uma ética”. Por meio do desejo é que surgiria a vontade, e esta se produziria pela singularidade pessoal. Produzir algo requer esforço, porém o esforço guiado pelo desejo produz a potência humana. O desejo estético de criar produz regras pessoais e coletivas não-repressoras. São regras necessárias e constitutivas da expressão estética e erótica no mundo. Portanto, o “desejo” é um desejo de expressão estética, sendo auto-organizador e auto-regulador. O resultado disso para nosso tipo de clínica é inserir o desejo, a consciência corporal e imaginativa no processo terapêutico. Fazer clínica é criar caminhos de interligação de instâncias que incluam o desejo, ou que se façam pelo desejo, pelo Eros.
Na Clínica de Psicoterapia buscamos valorizar vários modos de inter-relacionar com diversas instâncias que atravessam a nossa existência, para que estas possam nos fazer potente. Deleuze (2006, pag. 154) afirma que poucos pensadores “não incidem sobre as pretensões como atos de transcendência (...)”. Nietzsche e Espinoza fazem parte deste grupo de raros filósofos que não valorizam modos de ação com pretensões, mas defendem modos de ação de potência. Para Deleuze (2006, pag. 155) “A potência é modesta, contrariamente à pretensão”. Em nossa clínica buscamos filósofos que pautem nossa prática, para que possamos questionar nossas idéias e criar situações de imanência (em oposição à transcendência), para potencializar a condição humana e valorizar aspectos que incluem as vivências corporais.
Carl Gustav Jung
Carl Gustav Jung
A Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, surgida em 1913, e também conhecida como Psicologia Junguiana ou Psicologia Complexa, estabelece idéias que se afinam com o pensamento de Nietzsche e de Espinoza. Para C. G. Jung, o homem existe dentro da psique e tudo é psique; para Spinoza tudo é natureza. Olhando por este aspecto, interior e exterior ambos são psíquicos e se interpenetram (SILVEIRA, 1968).
A psique também se constitui no desejo da criação humana, a cultura, a política, a economia, os ciclos da natureza, a biologia, etc., podem ser vistos como psique e manifestação psíquica, assim como manifestação de desejos. Somos atravessados pela psique coletiva e também produtores dela. Nietzsche considera o corpo como um lugar de dissociação do "eu", ainda que marcado de história. Provavelmente ele vê na ação de atenção ao próprio corpo, a sinalética corporal, um lugar que nos diferencia do ego fabricado por ideologias, práticas sócias e culturais. No corpo/alma está guardado o desconhecido, e este não aparece como em uma revelação, pois corpo e alma são movimentos, consciência, imaginação e pluralidade. Quem somos, no processo terapêutico, pode ser visto como um cultivo de "vir a ser um todo" mais consciente.
Há diferentes formas de expressão desta mesma unidade sincrônica, que chamamos de corpo/psique. Portanto a abordagem corporal, não deve ter a intenção de mobilizar um determinado aspecto, mas promover uma vivência que ative espontaneamente o que for mais adequado para estimular e “equilibrar” criativamente do cliente naquele momento. A clínica deve propiciar ao sujeito o desenvolvimento de processos imaginativos e das vivências corporais. Isto mobiliza a capacidade de auto-regulação da psique, também conhecida como "sabedoria corporal". Incluir o corpo no contexto do atendimento psicoterápico é não reduzido-lo a meros rótulos, mas sim, que se abra a experimentações. A Arteterapia pode ser um coadjuvante neste processo de exercício e conscientização da unidade corpo-psique. Esta forma de terapia trabalha com elementos que mobilizam o corpo físico, o corpo emocional, imaginativo e ficcional.
O processo terapêutico deve conectar o corpo com a alma, com as emoções e com a natureza, de modo a expandir a consciência pela experimentação de perceber por novos prismas. Se Spinoza chamaria isso de fazer um encontro potente, Nietzsche, diz que isto seria encontrar nossa potencia pela valorização do acontecimento – feito de tensão entre o instinto e as múltiplas instâncias dos diversos mundos que nos atravessam. Nesta clínica marcada pelos pensamentos de Spinoza, Nietzsche e Jung, as sensações corporais e os múltiplos signos, imagens e imaginações que povoam a psique individual e coletiva ganham destaque e ênfase na experimentação corporal ao invés de termos como recurso apenas conjecturas intelectuais. Este modo de sensibilização corporal pode criar uma certa tensão, porém isso possibilita ativar atitudes criativas e de produção de si mesmo. Deve-se, portanto, esquecer familiaridades e certezas; construir outras identidades e outras formas de lidar com o mundo e com outras pessoas em que a senso-percepção corporal esteja incluída. Pois, quando as experiências corporais não são conscientizadas como parte do processo individual e coletivo, a sociedade tende ao engessamento e à esterilização da vida.
Fonte: http://artigos.psicologado.com/atuacao/psicologia-clinica/nietzsche-spinoza-e-jung-reflexoes-sobre-a-clinica-de-psicoterapia#ixzz2EbmYMT65
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