Pular para o conteúdo principal

"Triste Fim" - Fernando Henrique Cardoso



Triste fim

Dilma pagou o preço de sua teimosia e da visão voluntarista da ‘nova matriz econômica’

Fernando Henrique Cardoso
04 Setembro 2016 | 03h01



Viramos uma triste página. Melhor teria sido que o governo Dilma Rousseff tivesse competência política e administrativa para chegar ao final. O que sobrou? Ilusões perdidas de quem acreditou no modo PT de governar, economia em recessão, desemprego em massa, escândalos, uma onda de desencanto.
Será a ex-presidente a única responsável? Não. Mas ela foi incapaz de manter as rédeas do governo e deixou evaporar as condições de governabilidade. Juntou-se a isso o crime de responsabilidade.
Uma pessoa eleita por 54 milhões de votos é derrubada, sendo inocente, como repisou a defesa petista? Houve um “golpe congressual” pela perda da maioria, como nos sistemas parlamentaristas? Tampouco. Em sua emotiva, mas racional argumentação, a doutora Janaína Paschoal sumarizou com pertinência o desrespeito às normas constitucionais. O impeachment requer fundamento jurídico (um desrespeito continuado à Constituição), mas é também um processo político (a falta de sustentação congressual e popular) e não tem necessariamente consequências capituladas no Código Penal. Foi jogando com este último aspecto que a presidente Dilma apelou retoricamente para sua “inocência” (não roubei, não tenho conta no exterior, etc.).
Diga-se em sua homenagem que, na parte lida do discurso perante o Senado e em boa parte da arguição, ela se mostrou “uma guerreira”. Se a guerrilheira do passado não era tão democrática como afirma, isso não apaga a nobreza de sua resistência ao arbítrio e à tortura. Tampouco, entretanto, sua combatividade justifica as “pedaladas fiscais”, os gastos não autorizados pelo Congresso, as centenas de bilhões de reais destinados à maciça transferência de renda em benefício de empresas nacionais e estrangeiras, via BNDES e subsídios fiscais, para não mencionar o fato de que presidia o Conselho de Administração da Petrobrás quando a empresa era assaltada em benefício de seu partido e da “base aliada”.
A presidente Dilma Rousseff pagou com o impeachment o preço de sua teimosia e da visão voluntarista que se consubstanciou na “nova matriz econômica”. E pagou também pela má companhia. Se a presidente não foi autora dos malfeitos, foi beneficiária política deles. Foram tantos os implicados nessa rede que, aos olhos do povo, ficou condenada toda a “classe política”. A ruína do governo petista provoca o desabamento do atual sistema político. Os erros vêm desde quando os partidos social-democratas (grosso modo, PSDB, PT, PSB e PPS) foram incapazes de inibir suas idiossincrasias e de conviver, divergindo quando fosse o caso.
O PT, herdeiro da visão de um mundo dividido em classes e organizado em torno do eixo direita-esquerda, encarou os liberal-conservadores, especialmente o PFL, como se fossem uma direita reacionária. Ao PSDB quis pintar como um partido da elite conservadora. A fatal decisão do primeiro governo Lula de se aliar aos “pequenos partidos”, e não ao PMDB – que representava o “centro” –, e transformar o PSDB em “partido inimigo” deu origem ao mensalão, que posteriormente encontrou réplica mais ampla no petrolão.
O PT de Lula abriu assim espaço para o oportunismo, o corporativismo dos vários “centrões”. O atual amálgama dos ultraconservadores em matéria comportamental com os oportunistas, clientelistas etc., forma o que eu denomino de “o atraso”. Meu governo e o de Lula, no início, ainda foram capazes de dar rumo ao País, o que forçou o atraso a jogar como coadjuvante. Mais recentemente, entretanto, houve uma inversão: o atraso passou a comandar as ações políticas, tendo Eduardo Cunha como figura exponencial. O mal-estar na sociedade, somado às informações sobre desmandos e corrupções que circulam numa sociedade livre e ao desenvolvimento de instituições estatais de controle externo, pôs em xeque o arranjo político institucional: o povo e as instituições reagiram e abriram espaço para a mudança de práticas.
Estamos assistindo, e não só no Brasil, aos efeitos das grandes transformações econômicas e tecnológicas. Sociedades estruturalmente fragmentadas por uma nova divisão do trabalho, culturalmente heterogêneas, com muitas dificuldades para manter a coesão social, com ampliação gigantesca da acumulação de capitais e interrogações sobre como oferecer empregos e reduzir a desigualdade.
Nesse tipo de sociedade as distinções de classe se mesclam com outras formas de identificação social. Nelas, paradoxalmente, os partidos perdem espaço e as narrativas capazes de juntar massas dispersas suprem o vazio criado na trama política. Por isso, o slogan: “É golpe”. O resto, as ligações efetivas dos petistas com interesses vários, os resultados de suas políticas e a identificação dos grupos que delas se beneficiaram, fica obscurecido pela força eventual da narrativa.
O desafio das lideranças renovadoras será criar, mais do que uma “narrativa”, propostas que desenhem caminhos para a Nação. Teremos capacidade, coragem e iniciativa para rever posturas, caminhos e alianças? Terá o PT disposição para uma verdadeira reconstrução e para o diálogo não hegemônico? E os demais partidos, inclusive e principalmente o PSDB, serão capazes de aglutinar a maioria, apesar de inevitáveis divergências?
O que vimos nas semanas passadas foi o rufar de tambores para a construção de um discurso: uma presidente inocente sendo destronada por golpistas ansiosos pelo poder. Mau começo para quem precisa se reinventar. A despeito disso, temos desafios comuns. Ou bem seremos capazes de reinventar o rumo da política ou novamente a insatisfação popular se manifestará nas ruas, sabe-se lá contra quem e a favor do quê. E não basta circus, belas palavras, também é preciso oferecer panis, um rumo concreto para o País e sua gente.
*Sociólogo, foi presidente da república

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mito da caverna de Platão se aplica à hipnose midiática atual e a sua influência manipuladora nas massas carentes de uma temática própria.

O mito da caverna, de Platão O mito da caverna conta que alguns prisioneiros vivem, desde o nascimento, acorrentados numa caverna, passando todo o tempo a olhar para a parede do fundo da caverna, que é iluminada pela luz duma fogueira. Nesta parede aparecem as sombras de estátuas de pessoas, de animais, de plantas e de objetos, mostrando cenas e situações do dia-a-dia. Os prisioneiros dão nomes a essas sombras e ficam analisando e julgando as situações. Se um desses prisioneiros se desvencilhasse das correntes para explorar a caverna por dentro e o mundo por fora, conheceria a realidade e perceberia que passou a vida analisando e julgando apenas sombras, imagens projetadas por estátuas. Quando saísse da caverna e entrasse em contato com o mundo real, se encantaria com os seres de verdade, com a natureza real. Ao voltar para a caverna, ansioso pra passar o seu conhecimento adquirido fora da caverna para os outros prisioneiros, seria ridicularizado. Os prisioneiros que não conh...

Espinosa – O apóstolo da razão - 5 Virtudes do homem livre

"Facilmente veremos em que se diferencia o homem que se conduz apenas pelo afeto, ou pela opinião, do homem que se conduz pela razão. Com efeito, o primeiro, queira ou não, faz coisas que ignora inteiramente, enquanto o segundo não obedece a ninguém mais que a si próprio e só faz aquelas coisas que sabe serem importantes na vida e que, por isso, deseja ao máximo. Chamo, pois, ao primeiro, servo, e ao segundo, homem livre. Gostaria de fazer ainda umas poucas observações sobre as inclinações e a maneira de viver desse último” – Espinosa, Ética IV, prop 66, esc Espinosa buscava viver com virtude, virtus: força, potência. Para quem está chegando agora talvez seja difícil perceber, mas, segundo uma comprida cadeia de axiomas e definições, a virtude se funde à felicidade e à utilidade, ela torna-se o caminho e ao mesmo tempo o ponto de chegada para a vida livre (veja aqui). O sábio trilha caminhos que o tornam cada vez mais sábio, isso o alegra, pois o permite conhecer mais e mais...

Um exemplo

Bom dia meu amigo, tudo bem? Sou Mateus Macabu, Asessor do Vereador Wellington Santos, quero passar pra você uma breve prestação de contas do Mandato do Vereador. O vereador Wellington Santos representa 24,37% das matérias em debate na Câmara Municipal de Casimiro de Abreu. Temos 08 Leis em execução no Município, como a Lei n. 2248/2022 e a Lei 2249/2022, a primeira que garantiu acesso da rede de Wi-Fi para todos os usuários do nosso Hospital, a segunda garante a isenção do IPTU a templos religiosos em forma de comodato ou aluguel. Dentre as 179 indicações na Câmara Municipal, temos dezenas executadas, como a Indicação n. 946/2021 que criou o grupamento da Romu em Casimiro de Abreu, trazendo mais segurança para nossa população, a Indicação n. 474/2023 que criou o Comitê de Segurança Escolar, com vários segmentos da nossa Sociedade, em um momento que vivíamos de grande apreensão nas Escolas. Somos o único Vereador que possui Gabinete Avançados para atender a população, sendo 01 em C...