Diante das primeiras tensões, e na ausência de um projeto, a
coalizão de Bolsonaro rachou em quatro grupos. Quais são eles? Que qerem? Como
a divisão poderia abrir caminho para um novo projeto?
OUTRASPALAVRAS
CRISE BRASILEIRA
por Antonio Martins
No início dos anos 1990, ficou claro que a privatização do
setor ferroviário, na Inglaterra, havia afundado a qualidade dos serviços. Os
problemas se multiplicavam, mas o mais evidente era que os trens jamais
chegavam no horário. Uma investigação revelou a causa dos transtornos. Para
afastar o Estado, haviam concorrido múltiplos interesses de privatizadores.
Mas, uma vez assegurado o controle do sistema, eles se degladiavam. A empresa
que controlava as vias; a que operava as composições; a encarregada de limpeza
e logística; as responsável por vender as passagens – cada uma estava
interessada acima de tudo em seus próprios lucros – e tomava decisões que
frequentemente chocavam-se com as atividades das demais. O resultado era o
caos. O governo Bolsonaro vive, há duas semanas, um inferno semelhante.
Diante das primeiras tensões, revelou-se o vazio – a
ausência de um projeto comum. Sem ter nada em torno de que se unir, os quatro
grupos que se articularam em 2018 para viabilizar a vitória do ex-capitão
dividiram-se, cada um aferrado a seus interesses particulares. Este movimento
centrífugo permitiu, em primeiro lugar, um mapeamento mais preciso da coalizão
governista e de seus conflitos internos. Muito mais importante: expôs um
governo incapaz de caminhar, porque marcado por disputas intrincadas, que geram
atritos frequentes, ruidosos e muitas vezes grosseiros
Este desentendimento amplia tanto as chances de resistir aos
principais projetos do governo quanto as de provocar um curto-circuito mais
amplo e neutralizar as ameaças que ele representa. Mas da possibilidade à
mudança de cenário há ainda um longo caminho a percorrer. A chave é esboçar as
linhas básicas de um projeto alternativo. Sem isso, é provável que a janela de
oportunidade se feche ou – pior – que seja preenchida por outra articulação
conservadora. Vale atentar para as ações cada vez mais desenvoltas do general
Mourão…
* * *
Cronologicamente, a primeira dissidência foi aberta pela ala
do bolsonarismo representada pelo ministro Sérgio Moro e pelos procuradores da
Operação Lava Jato – cujo projeto político e de poder tornou-se indisfarçável.
Na madrugada de 20/3, o próprio Moro perturbou o conluio governista, ao lançar
a primeira investida contra Rodrigo Maia. O presidente da Câmara havia
decidido, após entendimento com o Palácio do Planalto, adiar por algum tempo a
tramitação do “pacote anticrime” de Moro. Temia que, num cenário em que o
governo ainda não firmou uma base mínima de apoio no Congresso, submeter
simultaneamente duas propostas polêmicas – a do ministro da Justiça e a
“Reforma” da Previdência – fosse desastroso.
Moro não se conformou. Cobrou o presidente da Câmara
publicamente e numa série de mensagens pessoais, disparadas durante a
madrugada. A impertinência foi repreendida: “Eu sou o presidente da Câmara e
ele é funcionário do presidente Bolsonaro. O presidente é que tem de vir aqui
conversar comigo”, retrucou Maia. Ao invés de calar-se, Moro insistiu. Irônico,
sugeriu que Maia está entre os que “entendem que o combate ao crime pode ser
adiado indefinidamente”.
O consórcio Moro-Lava Jato teve, nas duas semanas do
confronto, apoio do setor representado pelo próprio presidente, seu entorno
familiar e “gurus” como Olavo de Carvalho. Horas depois de Moro fustigar
Rodrigo Maia, suas dores foram assumidas por Carlos Bolsonaro, o Carluxo. O
filho a quem o presidente chama de “pitbull” provocava, no Instagram: “Por que
o presidente da Câmara está tão nervoso”? No mesmo momento, os grupos
identificados com o bolsonarismo lançavam, nas redes sociais, uma saraivada de
ataques pessoais a Maia. Como é típico, foram marcados por agressividade e
desinformação Algumas das postagens sugeriam, sem fundamento, que o deputado
não podia exercer a presidência da Câmara, por ter nascido no Chile (onde seus
pais eram exilados políticos).
Num movimento paralelo, o próprio presidente engrossava o
coro das agressões – principalmente a partir do ponto em que surgiram sinais da
queda de sua popularidade. Talvez tenha acreditado que, como na campanha
política, poderia voltar a crescer se se mostrasse hostil ao establishment. Na
sexta-feira (22/3), antes de embarcar ao Chile, comparou Rodrigo Maia a uma
namorada caprichosa. Em 23/3, num café com empresários chilenos, culpou, pelos
solavancos de seu governo, os “que não querem largar a velha política”. E mesmo
no domingo, de volta ao Brasil, chamou à Alvorada seu líder no governo, o
inexpressivo major Vitor Hugo, e orientou-o a dizer que “aos práticas do
passado não nos levam ao caminho em que queremos estar.”
Este conjunto de ataques arrepiou o terceiro grupo essencial
na sustentação do governo. Embora não possa ser chamada de “bolsonarista”, a
“velha política” – as bancadas conservadoras vastamente majoritárias no
Congresso Nacional – associou-se ao projeto do capitão ao longo do segundo
semestre de 2018. Foi, de ambos os lados, um casamento de conveniência. Em
janeiro, quando Rodrigo Maia elegeu-se presidente da Câmara, teve apoio explícito
do presidente e de seu PSL Seu compromisso com a agenda ultraneoliberal é
notório. Suas relações com Paulo Guedes, o ministro encarregado de levar
adiante tal agenda, são cordiais e sintônicas.
Mas por que motivo estas bancadas conservadoras, conhecidas
por sua proverbial astúcia política, aceitariam pagar sozinhas o preço de uma
“Reforma” impopular e que, mesmo largamente apoiada pela mídia, foi túmulo de
candidaturas em 2018? A “velha política” aceita correr riscos – mas quer
compensações. De imediato, dinheiro – verbas públicas com que deputados e
senadores alimentam, nos respectivos domicílios eleitorais, suas redes
fisiológicas. A médio prazo (e igualmente importante), desejam um governo
minimamente coerente e defensável. Ao relutar diante do primeiro quesito, e
sinalizar enorme incompetência para cumprir o segundo, Bolsonaro naturalmente
se desgastaria
As vociferações de Moro e do clã presidencial ampliaram este
desgaste. A atitude altiva de Rodrigo Maia sinalizou o tom da resposta. Ao
longo da semana, o presidente da Câmara recebeu a solidariedade não apenas de
seu partido, mas de quase todas as bancadas do majoritário “Centrão” na Câmara
dos Deputados. No final da semana, parecia que sequer o PSL apoiaria o
Planalto. No domingo, advertência cardinalícia: Fernando Henrique Cardoso
lembraria que “no Brasil, os partidos são fracos, mas o Congresso é forte (…)
comprar briga com o presidente da Câmara é caminho certo para o desastre”.
Dias antes, Moro e a Lava Jato haviam tentado um contra
ataque, com a prisão espetaculosa de Michel Temer. Descontentes com os reveses
sofridos nas semanas anteriores – quando se desbaratou o fundo de R$ 2,88
bilhões que planejavam desviar da Petrobras e do Tesouro – os procuradores da
República de Curitiba ensaiaram uma demonstração de força. Há tantas razões
para condenar Temer, seguindo-se o devido processo e respeitando-se o direito
de defesa, que trancafiá-lo preventivamente só pode ser visto como uma
arbitrariedade tola, um espernear. Pessimamente calculado, porém.
Em especial porque amedrontou o quarto setor essencial da
coalizão sem projeto que compõe o bolsonarismo: o baronato financeiro. Na
quinta e sexta feiras, o real e a bolsa de S.Paulo caíram cerca de 5%. Foi um
sinal de que a única ideologia dos mercados é o lucro, não importando se por
meio da “velha” ou da “nova” política. Enquanto Bolsonaro prometia entregar o
desmonte da Previdência e outros mimos, teve o apoio dos barões. A partir do
momento em que não puder cumprir o que prometeu, perderá o que conseguiu –
simples assim.
Para não deixar dúvidas, as quedas do real e das bolsas
foram acompanhadas de declarações enfáticas. “Operadores de mercado” ouvidos
pela Folha queixaram-se de que o presidente ignora a arte de cortejar os velhos
políticos (alguns chamaram-na de “Dilma de calças”). Também notaram que as
concessões feitas pelo projeto oficial aos militares foram tantas que a
narrativa segundo a qual trata-se de “eliminar privilégios” pode não se
sustentar…
Na segunda-feira, ensaiou-se uma trégua. Foi marcada por um
nítido recuo do presidente e seu entorno mais íntimo. Em cerimônia para marcar
a concessão de linhas de transmissão elétrica, Bolsonaro afirmou que sua
prioridade é a “Reforma” da Previdência. Noutro evento, com prefeitos e
governadores, Paulo Guedes adulou o antes atacado Rodrigo Maia, a quem
considerou um aliado da proposta do governo
O incêndio, porém, pode demorar a se extinguir. Horas antes,
duas figuras emblemáticas da suposta “nova política” do presidente
engalfinhavam-se em público. O deputado Kim Kataguiri, líder do MBL (e filiado
ao DEM-SP), atacou a líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann,
a quem acusou de “não fazer oposição republicana”. Para Kim, “a ‘Reforma’ da
Previdência morreu – e a culpa é do governo Bolsonaro”.
As duas semanas da primeira grande crise do governo ensinam
algumas lições. Primeira: a maioria conservadora formada nas eleições de
novembro último é frágil e pode ser desafiada. É verdade que nunca houve, além
de um presidente, um Congresso tão conservador e promíscuo diante do grande
poder econômico. Mas é igualmente claro que a falta de um projeto comum torna
muito vulneráveis tanto o Executivo quanto o Legislativo. Por não terem rumos,
ambos temem a maioria das ruas – que conquistaram no ano passado por uma série
de fatores conjunturais, mas é volátil. Ainda hoje, a Arquimedes, uma nova
empresa de análise de redes sociais que trabalha para o mercado financeiro,
constata, em relatório, que o apoio à proposta governamental para a Previdência
caiu a um mínimo inédito.
Abrem-se, rapidamente, duas possibilidades. Primeiro,
derrotar no Congresso um projeto que é essencial para a sustentação do governo
e seu projeto de desmonte e rapina. Segundo, acenar com um esqueleto de medidas
que apontem outro rumo, e resgatem o país da cantilena depressiva de cortes de
despesas, redução de direitos, sacrifícios, punições. Os artigos sucessivos de
André Lara Rezende revelam: até mesmo os economistas ligados ao mercado
percebem, aos poucos, o vazio e a inconsistência desta ideia.
Porém, para que a crítica não se esgote na academia, é
preciso formular, também, caminhos capazes de mobilizar a sociedade e sinalizar
outro rumo. Por exemplo, a revogação da Emenda Constitucional que congela os
gastos sociais por vinte anos, a retomada da valorização do salário mínimo, um
plano ousado de investimentos para recuperar os serviços públicos, os direitos
sociais e a infraestrutura.
Sem tal alternativa, a janela se fechará. Ou será
aproveitada por outros atores, de projeto claramente conservador. No início
desta semana, noticiava-se que o general Mourão fará nesta terça-feira em São Paulo, dois encontros com a Fiesp que
estão provocando frisson entre o grande empresariado. Ainda mais inusitado e
preocupante: no meio da semana passada, um conjunto de deputados paulistas
reuniu-se com o Comandante Militar do Sudeste, general Luiz Eduardo Ramos. O
pretexto foi ouvir as opiniões de Ramos sobre a proposta do governo para as
aposentadorias militares. Mas em pouco tempo, relatou a Folha, o diálogo
evoluiu para queixas em relação a Bolsonaro e sua inapetência para a política.
O general teria sugerido a seus interlocutores que prestem atenção ao que diz o
vice-presidente – depois de frisar que se opõem de modo cabal a uma aventura
militar brasileira na Venezuela…
O cenário, que há alguns meses parecia tenebroso, tornou-se
incerto e instável. Surgiu, no desgaste e desorientação do governo, uma brecha
clara. Não aproveitá-la implica abrir a porteira para novos perigos – e talvez
menos contraditórios…
ANTONIO MARTINS
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