Sentando no divã com os Zulus
A partir da crença em uma energia vital que permeia todos os seres vivos e materiais, povo africano conversa com seus antepassados, aqueles que mais acumularam sabedoria
Por Flora Pereira e Natan Aquino, do Projeto Afreaka
Philani* já faz um tempo não encontra emprego. Mbali* está preocupada: quer se casar, mas o amado não consegue juntar dinheiro para a ocasião, que no caso sul-africano é obrigação integral do noivo. Já a mulher de Dingane* está doente e ele quer saber uma segunda opinião sobre o caso. Todos precisam tomar importantes decisões e, para isso, vieram pedir algumas dicas aos seus antepassados.
Na cultura tradicional Zulu, e em muitas outras africanas, acredita-se em algo chamado força vital, uma maneira de compreensão da natureza, da sociedade e de si mesmo em que uma energia de origem comum permeia infinitamente todos os seres vivos e materiais do mundo visível e do invisível. A força vital que um homem carrega não morre com ele, ela apenas se transforma e a energia prevalece. Vem daí o tradicional respeito aos antepassados, uma vez que são eles aqueles que mais acumulam a tal força, assim como experiência e sabedoria.
Philani, Mbali e Dingane vieram para a Cerimônia de Cura, realizado pela curandeira da comunidade, socialmente responsável pela intermediação entre os dois mundos. Os corações partidos, doentes ou desempregados trazem os seus problemas para o evento, uma espécie de divã para os zulus, onde a doutora e seus aprendizes se comunicarão com os antepassados de cada um e trarão ao mundo físico as respostas enviadas por eles.
A Cerimônia de Cura é uma das mais bem preservadas tradições zulu, etnia correspondente a 22% da população da África do Sul e que inclui o atual presidente da república, Jacob Zuma. Ser zulu significa fazer parte de uma identidade e carregar consigo suas tradições, às vezes mais, às vezes menos, às vezes de modo quase imperceptível. Em KwaZulu Natal, região de maior concentração do povo zulu, a cultura e a luta para conservá-la são mais fortes. Ali, é possível encontrar práticas que mantêm vivas tradições centenárias.
A casa onde a reza vai acontecer é redonda e contém apenas um ambiente, todos estão lá dentro e a cantoria já começou. Alguns puxam o coro mais do que os outros, mas todos participam. Do lado esquerdo da única porta ficam as visitas, aproximadamente quinze pessoas entre homens, mulheres e crianças. Do lado direito, duas aprendizas e um curandeiro de outra comunidade, que estava apenas de passagem por ali, mas acabou ficando para a ocasião. No centro da sala, uma galinha, a única não muito feliz em estar presente.
Todos estão à espera da Sangoma, nome dado à conselheira mestre da cerimônia, que chega na hora do fervo. Logo no começo, solta algumas frases em zulu, que provoca risos no público e nesse clima descontraído segue-se quase todo o ritual. Uma a uma, as pessoas se levantam para levar suas oferendas até ela e confessar seus respectivos problemas. Mbali foi quem trouxe a galinha. Ela se ajoelha no centro do ambiente e acende duas velas, enquanto uma das aprendizas leva o bicho para a fora e volta com algumas gotas de sangue, que são brevemente carimbadas na testa da jovem. Depois de Mbali, todos os interessados se encaminham para o meio da sala e se posicionam ao seu lado, onde um por um recebe a bênção da Sangoma.
Agora tudo está pronto. A cantoria mais pesada começa e todas as energias estão concentradas para a conexão com os ancestrais. Um dos jovens do ambiente está preparado com papel e caneta, pois quando o antepassado começa a dar os seus conselhos pelas bocas dos quatros especialistas presentes, ele fala rápido, muito rápido: dizem para Mbali não se preocupar, que o casamento vai dar certo, mas é preciso paciência para esperar. Philani deve continuar rezando para os seus antepassados, mas tem que se dedicar mais na procura do emprego. Para Dingane, que veio checar se deveria seguir o conselho da primeira curandeira, a resposta é positiva: ela estava certa e é melhor preparar uma cabra no final de semana como oferenda.
Apesar de 80% da população praticar o cristianismo na África do Sul, estima-se que a porcentagem é a mesma para o número de pessoas que frequentam a Cerimônia de Cura ao menos três vezes ao ano, um dado para entender a importância e força do evento na tradição local, que ao mesmo tempo em que procura responder às inseguranças de seus frequentadores, é também para eles, uma maneira de alcançar a reserva inesgotável de energia e transmissão conhecimento.
*Nomes fictícios
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