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– 07/12/2016
Para o grande jurista, há uma razão para quase duzentos anos de
desresponsabilização dos juízes: eles são o grande guardião do poder
oligárquico. Mas existem alternativas
Fábio Konder Comparato, entrevistado por Franciele
Petry Schramm*
O arquivamento do pedido de impeachmentdo Ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, enquanto ainda tramitava no
Senado Federal, não surpreendeu Fábio Konder Comparato, um dos integrantes do
grupo de juristas que apresentou o pedido.
Segundo o professor emérito de Direito da Universidade de São Paulo
(USP), é preciso levar em consideração que os senadores são julgados pelo STF
nas infrações penais comuns, e que vários deles respondem a inquéritos
criminais ou são réus em ações penais. “É óbvio que o Senado Federal não
é o órgão apropriado para julgar os crimes de responsabilidade cometidos pelos
Ministros do Supremo Tribunal”, avalia.
Apresentado ao Senado no dia 13 de setembro e arquivado uma semana
depois, o pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta, em seus argumentos, o
comportamento partidário do ministro e a violação de princípios constitucionais
e de códigos da magistratura.
Em entrevista a Articulação Justiça e Direitos Humanos, Comparato alerta
para a falta de controle jurídico sobre Ministros do Supremo Tribunal Federal e
aponta a necessidade de uma reforma do Poder Judiciário.
Confira:
JusDh: O pedido de impeachment de Gilmar Mendes aponta um comportamento
partidário por parte de Gilmar Mendes, e acusa o ministro de ferir a
Constituição, o Código de Ética e a Lei Orgânica da Magistratura. O senhor
considera que a postura do Ministro é uma postura isolada dentro do STF?
Fábio Comparato: De todos os atuais Ministros do Supremo Tribunal
Federal, o desempenho de Gilmar Mendes é o que mais deixa a desejar. É por isso
que decidimos ingressar com o pedido de impeachment, exatamente para alertar os
demais Ministros e a opinião pública quanto ao perigo de generalização desse
mau procedimento. Na verdade, atualmente os Ministros de nossa Suprema Corte de
Justiça não estão sujeitos a controle jurídico algum, pois não há nenhum Poder
acima do tribunal e dos magistrados que o compõem. A Constituição Federal
dispõe em seu artigo 102 competir precipuamente ao Supremo Tribunal Federal “a
guarda da Constituição”. O Conselho Nacional de Justiça é um órgão
constitucional, com competência para controlar o cumprimento dos deveres
funcionais dos juízes, declarados no Estatuto da Magistratura (art. 103-B, §
4º).
Ninguém pode negar, nem mesmo o
Ministro Gilmar Mendes, que os Ministros do Supremo Tribunal Federal fazem
parte da magistratura e devem, por conseguinte, cumprir os deveres impostos
pelo Estatuto da Magistratura. Ora, abusando de sua condição de instância
judiciária máxima, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade
3.367 do Distrito Federal, decidiu que “o Conselho Nacional de Justiça não tem
nenhuma competência sobre o STF e seus Ministros”. Ou seja, o tribunal decidiu
isentar-se do cumprimento de qualquer dever funcional, ainda que previsto na Constituição,
da qual foi declarado guardião.
Esse não a primeira vez que um pedido de impeachment de um ministro do
STF foi protocolado no Senado Federal. Até o momento, nenhum desses pedidos foi
acatado pelo Senado. O senhor avalia que há dificuldade em colocar em
questionamento as posturas e decisões do STF? Por quê?
Levando-se em conta que os Senadores são sujeitos à jurisdição do
Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns, e sabendo-se que vários
dos atuais Senadores respondem a inquéritos criminais, ou já são réus em ações
penais, é óbvio que o Senado Federal não é o órgão apropriado para julgar os
crimes de responsabilidade cometidos pelos Ministros do Supremo Tribunal.
Consta, aliás, que Sua Excelência, o Sr. Presidente do Senado Federal, responde
a inquérito criminal no Supremo. Ora, ele, evidentemente, assim que recebeu a
petição de impeachment de Gilmar Mendes, determinou o seu arquivamento. Ou
seja, aplicou-se o velho costume do “dá lá, toma cá”.
De que forma a composição do Sistema de Justiça contribuiu para a
manutenção de uma prática pouco democrática e que nem sempre observa a garantia
dos direitos humanos?
Até a promulgação da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº
35, de 14/03/1979), não eram definidos os deveres funcionais dos magistrados. E
até a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 8/12/2004, que instituiu o
Conselho Nacional de Justiça, não havia nenhum órgão de controle da atuação dos
magistrados, incumbido de julgar o cumprimento de tais deveres.
Verificamos, portanto, que durante um século e meio após a
Independência, os nossos magistrados atuaram isentos de qualquer controle, a
não ser o mui esporadicamente exercido por eles mesmos.
Dois exemplos históricos são ilustrativos dessa tradição de
irresponsabilidade.
Em sua viagem ao redor do mundo, pela qual comprovou sua teoria da
evolução das espécies, Charles Darwin fez uma estadia de vários meses no Brasil
em 1832. Pôde então verificar o seguinte, conforme reportado em seu diário de
viagem:
“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem
de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser
subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra
profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por
brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de
não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer
vantagem sobre os miseráveis e os pobres”.
O segundo exemplo diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, o mais
alto órgão judiciário no tempo do Império. Ao final do seu reinado,em
declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II não pôde conter-se e desabafou:
“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto
alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos
prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se
conseguirá esse fim”.
Quais caminhos e possibilidades o senhor considera necessário para
tornar o Sistema de Justiça menos intangível, no que se refere à sua
composição e na avaliação de suas próprias ações?
Desde sempre a magistratura brasileira, com raras e mui honrosas
exceções, fez parte integrante do poder oligárquico, que predominou em nosso
país desde o início da colonização portuguesa. Ora, um costume multissecular,
entranhado na mentalidade coletiva e preservado pelas instituições políticas,
não desaparece em pouco tempo. O processo de reforma em profundidade do Poder
Judiciário será, portanto, concomitante ao processo de extinção do regime
oligárquico; ou seja, não se fará da noite para o dia e, uma vez iniciado (o
que ainda não aconteceu), irá durar várias gerações. O que se pode fazer hoje
para provocar o início desse processo é propor algumas medidas específicas, as
quais, como o pedido de impeachment de Gilmar Mendes, serão no começo
certamente denegadas, mas, sendo reiteradas, acabarão por abalar a opinião
pública, abrindo os olhos da maioria do povo, que não faz parte da oligarquia.
Uma dessas medidas é a transformação do Supremo Tribunal Federal em Alta Corte
Constitucional, reduzindo a sua competência e determinando que a nomeação de
seus Ministros seja feita pelo Congresso Nacional, dentre candidatos escolhidos
preliminarmente pelo Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Superior do
Ministério Público e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. É o
que consta da Proposta de Emenda Constitucional nº 275/2013, por mim redigida e
apresentada à Câmara dos Deputados pela Deputada Luiza Erundina.
A segunda medida é a reorganização do Conselho Nacional de Justiça, a
fim de que ele não seja composto por uma maioria de magistrados, como agora, e
passe a ter explicitamente jurisdição sobre os Ministros do Supremo Tribunal
Federal.
A terceira medida seria,
simplesmente, reintroduzir em nossa Constituição a ação popular contra
magistrados, como determinavam os artigos 156 e 157 da Constituição de 1824:
Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são
responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício
de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.
Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles
ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio
queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na
Lei.
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*Publicado no JusDH
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