17 de dezembro de 2013 às 08h16
CARTA ABERTA AO POVO DO BRASIL
EDWARD SNOWDEN,
publicado na Folha
Seis meses
atrás, emergi das sombras da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos EUA para
me posicionar diante da câmera de um jornalista. Compartilhei com o mundo
provas de que alguns governos estão montando um sistema de vigilância mundial
para rastrear secretamente como vivemos, com quem conversamos e o que dizemos.
Fui para
diante daquela câmera de olhos abertos, com a consciência de que a decisão
custaria minha família e meu lar e colocaria minha vida em risco. O que me
motivava era a ideia de que os cidadãos do mundo merecem entender o sistema
dentro do qual vivem.
Meu maior
medo era que ninguém desse ouvidos ao meu aviso. Nunca antes fiquei tão feliz
por ter estado tão equivocado. A reação em certos países vem sendo
especialmente inspiradora para mim, e o Brasil é um deles, sem dúvida.
Na NSA,
testemunhei com preocupação crescente a vigilância de populações inteiras sem
que houvesse qualquer suspeita de ato criminoso, e essa vigilância ameaça
tornar-se o maior desafio aos direitos humanos de nossos tempos.
A NSA e
outras agências de espionagem nos dizem que, pelo bem de nossa própria
“segurança” –em nome da “segurança” de Dilma, em nome da “segurança” da Petrobras–,
revogaram nosso direito de privacidade e invadiram nossas vidas. E o fizeram
sem pedir a permissão da população de qualquer país, nem mesmo do delas.
Hoje, se
você carrega um celular em São Paulo, a NSA pode rastrear onde você se
encontra, e o faz: ela faz isso 5 bilhões de vezes por dia com pessoas no mundo
inteiro.
Quando uma
pessoa em Florianópolis visita um site na internet, a NSA mantém um registro de
quando isso aconteceu e do que você fez naquele site. Se uma mãe em Porto
Alegre telefona a seu filho para lhe desejar sorte no vestibular, a NSA pode
guardar o registro da ligação por cinco anos ou mais tempo.
A agência
chega a guardar registros de quem tem um caso extraconjugal ou visita sites de
pornografia, para o caso de precisarem sujar a reputação de seus alvos.
Senadores
dos EUA nos dizem que o Brasil não deveria se preocupar, porque isso não é
“vigilância”, é “coleta de dados”. Dizem que isso é feito para manter as
pessoas em segurança. Estão enganados.
Existe uma
diferença enorme entre programas legais, espionagem legítima, atuação policial
legítima –em que indivíduos são vigiados com base em suspeitas razoáveis,
individualizadas– e esses programas de vigilância em massa para a formação de
uma rede de informações, que colocam populações inteiras sob vigilância
onipresente e salvam cópias de tudo para sempre.
Esses
programas nunca foram motivados pela luta contra o terrorismo: são motivados
por espionagem econômica, controle social e manipulação diplomática. Pela busca
de poder.
Muitos senadores
brasileiros concordam e pediram minha ajuda com suas investigações sobre a
suspeita de crimes cometidos contra cidadãos brasileiros.
Expressei
minha disposição de auxiliar quando isso for apropriado e legal, mas,
infelizmente, o governo dos EUA vem trabalhando arduamente para limitar minha
capacidade de fazê-lo, chegando ao ponto de obrigar o avião presidencial de Evo
Morales a pousar para me impedir de viajar à América Latina!
Até que um
país conceda asilo político permanente, o governo dos EUA vai continuar a
interferir com minha capacidade de falar.
Seis meses
atrás, revelei que a NSA queria ouvir o mundo inteiro. Agora o mundo inteiro
está ouvindo de volta e também falando. E a NSA não gosta do que está ouvindo.
A cultura de
vigilância mundial indiscriminada, que foi exposta a debates públicos e
investigações reais em todos os continentes, está desabando.
Apenas três
semanas atrás, o Brasil liderou o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas
para reconhecer, pela primeira vez na história, que a privacidade não para onde
a rede digital começa e que a vigilância em massa de inocentes é uma violação
dos direitos humanos.
A maré
virou, e finalmente podemos visualizar um futuro em que possamos desfrutar de
segurança sem sacrificar nossa privacidade.
Nossos
direitos não podem ser limitados por uma organização secreta, e autoridades
americanas nunca deveriam decidir sobre as liberdades de cidadãos brasileiros.
Mesmo os
defensores da vigilância de massa, aqueles que talvez não estejam convencidos
de que tecnologias de vigilância ultrapassaram perigosamente controles
democráticos, hoje concordem que, em democracias, a vigilância do público tem
de ser debatida pelo público.
Meu ato de
consciência começou com uma declaração: “Não quero viver em um mundo em que tudo
o que digo, tudo o que faço, todos com quem falo, cada expressão de
criatividade, de amor ou amizade seja registrado. Não é algo que estou disposto
a apoiar, não é algo que estou disposto a construir e não é algo sob o qual
estou disposto a viver.”
Dias mais
tarde, fui informado que meu governo me tinha convertido em apátrida e queria
me encarcerar. O preço do meu discurso foi meu passaporte, mas eu o pagaria
novamente: não serei eu que ignorarei a criminalidade em nome do conforto
político. Prefiro virar apátrida a perder minha voz.
Se o Brasil
ouvir apenas uma coisa de mim, que seja o seguinte: quando todos nos unirmos
contra as injustiças e em defesa da privacidade e dos direitos humanos básicos,
poderemos nos defender até dos mais poderosos dos sistemas.
Tradução de
CLARA ALLAIN
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