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DOMINAÇÃO, LINGUAGEM PERFORMATIVA E TETO DE GASTOS

   

Quando falamos em dominação, não nos referimos a simples relações de assimetria e poder. Na verdade, queremos chamar a atenção para desigualdades profundas e duráveis em diferentes esferas e contextos que se repetem constantemente e colonizam a realidade.

Para tornar essa ideia mais clara, podemos dizer que sistemas de dominação realizam justamente o contrário da noção de igualdade complexa, cunhada por Michael Walzer[1]: em vez de diferentes pessoas (de classes distintas) lograrem primazia em cada uma das esferas de distribuição dos bens sociais (poder político, bens materiais e dinheiro, bem estar e segurança, cargos em empregos, trabalho, tempo livre, educação, reconhecimento, etc.), não podendo converter suas vantagens de uma esfera à outra nem dispor da capacidade de dominar o resto, são as mesmas pessoas (das mesmas classes) que se apropriam das posições privilegiadas nas distintas esferas.

A análise da estrutura da sociedade brasileira revela a existência de um sistema de dominação que se renova ao longo do tempo: predominam nas esferas mais valorizadas de reprodução dos bens sociais sempre os mesmos, quer dizer, os mesmos grupos/classes e inclusive famílias. O sistema brasileiro de dominação permite certa participação subsidiária a extratos médios, mas condena a maioria da população à falta de oportunidades e ao sofrimento.

Sem que essa estrutura profunda fosse modificada, é inegável reconhecer que houve certa melhoria geral no acesso a bens sociais por parte de grupos marginalizados durante os dois mandatos do presidente Lula e o primeiro da presidenta Dilma. Essa mudança na participação em proveito dos mais pobres parece ter ocorrido principalmente nas esferas de acesso à educação, reconhecimento social e complemento de renda - o que pode ser avaliado por acréscimos na estima e autoestima das classes populares e no grau de solidariedade.

Em momentos de possível ruptura, quando o sistema de dominação é ameaçado, instala-se o vale tudo. Foi assim no Golpe de 1964, com a deposição de um governo legitimamente eleito e com a violenta repressão aos opositores. A mesma coisa podemos dizer com respeito à ofensiva que culminou com o golpe contra a presidente Dilma: desde o resultado das eleições em 2014, seu governo foi submetido a um verdadeiro sítio. Partidos e líderes de oposição, grande mídia, parlamentares de centro, direita e extrema direita se uniram em concerto para deslegitimar o governo e torná-lo inoperante, atingindo inclusive a figura da presidenta.

Quero aqui abordar uma maneira não diretamente observável e subliminar de operar para a manutenção da dominação, que precisa ser revelada e combatida. Dissimula-se em dispositivos cujas formas evidentes de poder constituem somente sua dimensão mais superficial. Minha proposta é que nos fixemos na análise de dispositivos relacionados à comunicação, ao uso da linguagem, na produção da realidade. Vou usar o exemplo do debate sobre o teto de gastos, ele mesmo instrumento de dominação tornado possível pelo golpe-impeachment de 2016.

Em artigo recente, o Prof. Luiz Gonzaga Belluzzo[2] sugere que o debate brasileiro sobre o teto de gastos é um exemplo sobre produção da "realidade" pela linguagem dos mercados. Refere-se à obra de Christian Marazzi (Capital e Linguagem)[3], que analisou o percurso das finanças nos últimos trinta anos e sublinha a natureza performativa da linguagem (ou do jogo de linguagem) do dinheiro e dos mercados financeiros.

Como se dá essa produção da realidade por meio do uso da linguagem? Antes de responder, é necessário entender a distinção conceitual entre 'mundo' e 'realidade'. Recorro aqui a uma combinação entre realismo crítico e construtivismo social. Enquanto o primeiro se compõe de 'tudo o que é o caso' (Wittgenstein), a última engloba tudo o que é (socialmente) construído. Em outras palavras, o mundo é tudo o que acontece às pessoas, enquanto a realidade é tudo o que é construído pelas pessoas.

Talvez a distinção entre realidade e mundo fique mais clara por meio de uma analogia com a distinção entre risco e incerteza. Como sabemos, o risco pode ser calculado. Apoia-se na noção de probabilidade e é um instrumento de construção da realidade usado constantemente pelo modo (liberal e) neoliberal de governança. Já, a incerteza, como ficou mais claro recentemente a partir da experiência da pandemia de Covid-19, não é assimilável à lógica do risco. Por isso, momentos de incerteza, abrem possibilidades diferentes de agir na construção da realidade.

Podemos agora voltar à natureza performativa da linguagem ou à produção da realidade por meio de seu uso. A noção de performatividade da linguagem foi cunhada por Austin em sua teoria dos atos de fala. Em oposição ao positivismo lógico e sua esperança em alcançar uma linguagem ideal, Austin[4] parte do uso da assim chamada linguagem ordinária ou cotidiana. Dirige seu esforço para polemizar com a antiga ideia "de que o papel de uma declaração era tão-somente o de 'descrever' um estado de coisas, ou declarar um fato, o que deveria fazer de modo verdadeiro ou falso" (Austin, 1990, p. 21).

Inicialmente, Austin (1990, p. 24) observa que há inúmeros tipos de enunciados (de frases) realizados no modo indicativo, onde o problema da verdade ou falsidade nem sequer se coloca. Num casamento por exemplo, quando o noivo diz “aceito, esta mulher como minha legítima esposa”- do modo como é proferido no decurso da cerimônia -, ele não está descrevendo o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, mas está se casando. E seu enunciado não é uma descrição de algo cujo significado possa ser verdadeiro ou falso. Ao proferir tal enunciado, o indivíduo está realizando uma ação que faz parte do ato total de se casar.

 A seguir, dá-se conta que há toda uma variedade de formas e construções cognatas em que esse aspecto de realização é mais importante do que o simples fato de dizer algo. Quando (eu) prometo, aposto ou lhe agradeço, em cada um desses casos, estou realizando uma ação e, em cada uma delas, é o verbo do enunciado que designa o tipo de ação efetuado. Posso fazer uma promessa ou uma aposta, dizendo simplesmente “prometo” ou “aposto” (nas circunstâncias adequadas, é claro). A esses tipos de proferimentos, ele denominou performativos, “nome derivado do verbo inglês to perform, verbo correlato do substantivo ação; indica que ao se emitir o proferimento está se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo” (Austin, 1990, p. 25).

Austin procura então estabelecer uma oposição entre os performativos e outros tipos de enunciado que ele supunha responderem exclusivamente à forma dizer algo (não se constituindo portanto em ações). A estes enunciados, dotados da propriedade de serem verdadeiros ou falsos (tais como asserções, descrições e informações), intitula constativos. Posteriormente verifica que não pode manter a distinção entre performativos e constativos, isto é, entre enunciados da forma dizer algo e enunciados considerados como ações.

Ao aprofundar o contraste proposto, percebe que fazer uma asserção ou fornecer uma descrição de algo também caracteriza a realização de uma ação, assim como prometer ou agradecer. Examinando o caso paradigmático das declarações, ele mostra que podemos fazer algo e ao mesmo tempo dizer algo, sem nos restringirmos ao simples ato de falar. Assim, ao dizer que isso levava ao desemprego, eu não estava avisando nem protestando, mas simplesmente declarando um fato” [e simultaneamente fazendo algo] (Austin, 1990, p. 111). Ou, tomando um exemplo mais instrutivo, se eu disser 'aviso-o que o cão vai atacar', meu proferimento contém uma advertência (faz algo) e, ao mesmo tempo, é verdadeiro ou falso que o cão vá atacar.

A conclusão “é que não há necessariamente conflito entre: (a) o fato de ao emitirmos o proferimento estarmos fazendo algo; (b) o fato de nossa declaração ser falsa ou verdadeira” (Austin, 1990, p. 112). Logo, aquilo que Austin supunha ser um caso especial de utilização da linguagem, o proferimento performativo, transforma-se no caso geral.

Volto agora ao debate brasileiro sobre o teto de gastos e a produção da realidade pelo jogo de linguagem dos mercados. Todos os dias há alguém na mídia oligopolista defendendo a importância do teto de gastos para os indicadores da economia brasileira. Até o começo do ano, antes da emergência da Covid-19, essa defesa acalorada do teto de gastos praticamente inexistia. O problema tinha sido resolvido lá no governo Temer e o Ministério da Economia tocava a mesma nota neoliberal e recessiva. Mas, eis que surge a pandemia e o grau de incerteza cresce vertiginosamente, levando os agentes do mercado financeiro a defender suas posições, não sem a contribuição do banco central que injetou no fim de março 1,2 trilhão em recursos para os bancos.[5]

Até porta-vozes de instituições centrais da república, como o presidente da Câmara Rodrigo Maia[6], entram no debate em apoio ao teto de gastos. Para o economista Paulo Nogueira Batista Jr, a defesa de Maia talvez seja a "melhor possível do teto de gastos e de medidas que se poderia adotar para respeitá-lo", mas o diagnóstico é "falho e contém falácias e omissões significativas, que terminam por inviabilizar o caminho sugerido"[7].

Economistas (do mercado), porta-vozes de organizações empresarias e do comércio, jornalistas que comentam economia repetem sem cessar que o teto de gastos é imprescindível, que não pode ser abandonado. Constroem e produzem uma realidade que significa para a maioria da população brasileira uma vida de precariedade e de falta de oportunidades em todas as esferas de bens sociais. Enquanto isso os bancos mantêm seus resultados astronômicos e o sistema de dominação se retroalimenta sem discutir alternativas para o problema fiscal, tal como uma reforma que tribute altas rendas, dividendos e patrimônios elevados.

O processo é mais perverso ainda. Ao que tudo indica não será possível manter o teto de gastos. Se mantido, esclarece Nogueira Batista Jr no mesmo artigo, a "despesa primária do governo central cairia de 28% do PIB em 2020 para 20% do PIB em 2021. O déficit primário, de 11% para 3% do PIB. Uma redução sem precedentes do gasto e do déficit", o que não parece factível ainda mais no cenário pós-pandemia.

Então a que serve esse discurso? Creio que é um instrumento de chantagem permanente do tipo: ou o teto de gastos ou o caos econômico (falta de investimento, inflação e juros altos), para de fato o ir furando em um processo de modificações gradativas interpretado e impulsionado pelos grandes interesses do mercado financeiro, mantendo assim as assimetrias estruturais e as formas de exploração vigentes na sociedade brasileira. Nesse processo, os porta-vozes do mercado e das instituições apresentam representações e modelos como se fossem a própria "vontade do mundo", como sugere Boltanski[8]. Aqueles que preparam essas representações têm o poder de torná-las reais por também disporem dos meios principalmente jurídicos ou reguladores, para não falar dos meios repressivos.

Aluisio A. Schumacher é raduado em Economia, Doutor em Ciências Sociais, Professor da Unesp. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, FFC - Marília.
***
[1] Walzer, Michael. Las esferas de la justicia. Una defensa del pluralismo y la igualdad. México, Fondo de Cultura Económica, 1993.
[2] https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-linguagem-da-financa-e-o-teto-de-gastos.ghtml
[3] Marazzi, Christian. Capital y lenguaje : hacia el gobierno de las finanzas . 1a ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2014.
[4] Austin, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
[5] Para combater os efeitos negativos da epidemia de coronavírus sobre o sistema financeiro, o Banco Central já anunciou a disponibilidade de R$ 1,216 trilhão para os bancos brasileiros. A cifra, divulgada nesta segunda-feira, 23, pelo próprio BC, equivale a 16,7% do Produto Interno Bruto (PIB).... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/23/com-crise-bc-ja-anunciou-r-12-trilhao-em-recursos-para-bancos.htm?cmpid=copiaecola
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/teto-de-gastos-revela-a-urgencia-do-controle-dos-gastos-obrigatorios.shtml
[7] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/replica-defesa-de-maia-sobre-teto-e-inteligente-mas-contem-falacias-e-omissoes.shtml
[8] Boltanski, Luc. De la critique. Précis de sociologie de l'émancipation. Paris, Gallimard, 2009.



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