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Admirável Direito Novo

Haveria um paralelo entre o vazio do Direito e Política contemporâneos e a sociedade de condicionamento moral e social imaginada por Aldous Huxley?

Por André Felipe Portugal*
“Oh, maravilha! Como há aqui seres encantadores! Como é bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo!” [1]

Tomado pelo entusiasmo, o selvagem John, personagem de Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, descrevia o que esperava da sociedade fordista que, logo mais, viria a conhecer.

Na chegada à terra prometida, John se deparou com o condicionamento moral e social a que eram submetidos aqueles cidadãos. Não havia crenças, nem laços familiares. Também não havia livros. Não se lhes era permitido pensar (não que alguém o desejasse). O que havia era a explícita padronização (extinção) do sujeito, transformado em número e destinado unicamente a auxiliar o governo na manutenção da estabilidade social.

Não poderia ser diferente, aliás. Na medida em que, como em Gattaca, as pessoas eram fabricadas por procedimentos artificiais, a seleção social era previamente determinada. De um lado, fabricavam-se os Alfas; de outro, os defeituosos (Ípsilons), mas também relevantes na manutenção daquele status quo. Do mesmo modo, o autoritarismo estatal, quando influenciava o inconsciente dos cidadãos, seja através de ações explícitas, como na proibição de livros perigosos (Shakespeare, por exemplo), seja através de procedimentos implícitos, como a técnica da hipnopedia, pela qual lhes eram constantemente impregnadas frases prontas e distribuídas diariamente largas quantias de soma [2], lograva êxito em sua tarefa de banir o surgimento de qualquer pensamento crítico.

Se “não há estabilidade social sem estabilidade individual”; “setenta e duas mil repetições fazem uma verdade”; “quando o indivíduo sente, a comunidade treme”; “civilização é esterilização” e “um grama de soma vale mais do que o mal que se proclama” [3], a democracia, em seu sentido correto, evidentemente não existe.

Tempos depois da desilusão, porquanto se tratava de uma sociedade explicitamente padronizada, desprovida de pensamento e de qualquer senso da realidade (optava por abandoná-la, em troca do prazer), o selvagem “despertou novamente para a realidade exterior, olhou em torno de si, reconheceu o que estava vendo – reconheceu, com uma desalentadora sensação de horror e repugnância, o delírio incessantemente renovado de seus dias e suas noites, o pesadelo da pululante mesmice indistinguível. (…) Estacou, circunvagou os olhos aturdidos e horrorizados pela multidão vestida de cáqui no meio da qual se achava, com sua cabeça sobressaindo acima dela. ‘Como há aqui seres encantadores!’ As palavras cantantes vergastaram-no com seu sarcasmo. ‘Como é bela a humanidade! Oh! Admirável mundo novo…!’”

A despeito de a obra de Huxley ter sido escrita em 1932, sua atualidade é manifesta. Deste modo, parece interessante tentar, de modo fictício, analisar qual seria a reação de John, o selvagem, ao pisar na sociedade atual, mormente a brasileira.

Com efeito, nosso Admirável Mundo Novo, de modo algum adequa-se às expectativas que levaram o personagem à comunidade fordista. Vejamos.

Ainda que inexista a expressa censura a obras de conteúdo perigoso, não há como negar a doutrinação implícita das massas. Como no fordismo, busca-se condicionar as pessoas a aceitarem e se sentirem felizes com o destino ao qual estão inexoravelmente vinculadas, principalmente em decorrência das condições sociais.

Com isto, é atingida a mesma situação de ausência de pensamento crítico e senso de realidade. As frases prontas, principalmente nas searas política e jurídica, na medida em que adentram o inconsciente da população, tornam-se obstáculos a qualquer manifestação que possa abalar o establishment. Chega-se a um caminho semelhante à novilíngua, de Orwell [4], caracterizada pela redução quantitativa da linguagem, pelo Grande Irmão, com vistas à redução das condições de possibilidade de pensamento dos cidadãos. Neste caso, é verdade, o procedimento ocorre de modo não tão expresso.

Não existindo vontade de pensar (algo semelhante à síndrome do intelecto preguiçoso, de que fala Saramago [5]), opta-se por métodos mais fáceis e convenientes de apreensão de informações. E, como se ressaltou, o Direito não se vê livre disto. Pelo contrário, tem sido cada vez mais notória a influência deste imaginário no âmbito jurídico, cada vez mais visto pelos estudantes exclusivamente por seu aspecto pragmático. Ao invés de estudos aprofundados a partir de obras de fato teóricas, opta-se pelo caminho menos complexo, encontrado naquelas cuja leitura não exige qualquer reflexão crítica. Neste sentido, faça-se alguma justiça aos alunos: o sistema lhes exige (apenas) isso.

O Direito, como a política, deve ser visto como instrumento de transformação da realidade social. Se, no entanto, ambos se veem embalados por esta onda de ausência de pensamento, torna-se difícil superar a manipulação, tanto mais em um sistema no qual a exclusão é o pressuposto de sua eficiência. Assim, “bandido bom” sempre será “bandido morto”, o Estado sempre será um mal, direitos fundamentais serão garantidos somente “para quem os merece” e os juízes sempre decidirão “conforme sua consciência”. Processo para quê, se “há casos em que a sentença já está escrita antes do crime”? [6].

Como em Huxley (e Orwell), a democracia sucumbe. O ser humano não é visto como tal, mas como número. Como em Hannah Arendt, o mal é banalizado [6]. Como em Saramago, a cegueira branca toma conta da sociedade, as pessoas perdem os olhos e não mais veem uns aos outros [7].

Diante de tais constatações, John, ironicamente, afirmaria: “Oh, maravilha! Como há aqui seres encantadores! Como é bela a humanidade! Oh, admirável mundo novo!”.
E se perguntaria, logo após: quando é que tornaremos a ter olhos?

______________________________
*André Felipe Portugal é formado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (Unicuritiba) e pós-graduando em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.
[1] HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 2 ed. São Paulo: Globo, 2003.
[2] Soma era a droga largamente distribuída à população da sociedade fordista, para garantir aquele estado de permanente esquecimento da realidade.
[3] HUXLEY, op. cit.
[4] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[5] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 117.
[6] Ibid., p. 244.
[7] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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