Governo prometia atrair investidores
com “reformas”, mas até capital especulativo se retira em massa do país.
Reservas internacionais, cruciais em crises, começam a ser liquidadas. Ficam a
recessão e o desemprego
OutrasPalavras
por José
Álvaro de Lima Cardoso:
Publicado 26/10/2020 às 16:03 -
Atualizado 26/10/2020 às 16:07
Desde 2019 o Brasil enfrenta a chamada
“fuga de capitais”. Nos primeiros oito meses deste ano US$ 15,2 bilhões
deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central
começou a realizar essas estatísticas, em 1982. Ao mesmo tempo, investidores
estrangeiros retiraram R$ 88,2 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 29 de
setembro, o dobro do registrado em todo o ano passado. No Brasil não há
controle de entrada e saída de capitais externos (quarentena ou um tipo de
pedágio para o capital que entra no país). O que é típico de país atrasado.
Aqui na América Latina o Chile tem, na Ásia, a Malásia dispõe. Seria
fundamental realizar esse tipo de controle, para preservar as economias da
voracidade dos capitais especulativos, já que, no fundamental, esse tipo de
capital não passa de um mecanismo de dominação e controle dos capitais sobre
economias subdesenvolvidas.
Se o balanço de pagamentos, que
contabiliza todas as transações do país com o exterior, for cronicamente
deficitário é possível que o país comece a queimar suas reservas internacionais,
que são fundamentais em momentos de grande crise como o atual. São as reservas
acumuladas nos governos Lula e Dilma que impediram, até aqui, que as contas
externas do país entrassem em colapso. São as reservas, atualmente de US$ 343
bilhões (R$ 1,9 trilhão), em agosto, que dão uma certa tranquilidade para o
acesso à moeda estrangeira, que é fundamental nestas horas, já que o Real não é
uma moeda de aceitação internacional.
Os acumulados em 12 meses das: contas
de capital passaram a registrar resultado negativo, a partir do terceiro
trimestre de 2019. As reservas, por sua vez, que fecharam 2018 no nível de US$
375 bilhões, em fins de agosto somavam US$ 343,5, como vimos. Ou seja, as
reservas vêm sendo lentamente desgastadas em face da perda líquida de capitais
por parte do Brasil. É claro que as reservas só justificam sua : existência se
forem usadas numa hora dessas, de aperto financeiro internacional. A questão é
que o Brasil está tendo problemas no Balanço de Pagamentos por uma política
econômica entreguista e antinacional.
O Brasil quebrou 3 vezes no período FHC
(nas contas externas), na década de 1990. Ou seja, ficou sem solvência para
pagar seus compromissos internacionais, também (dentre outras razões) por
absoluta falta de reservas em dólar. Um país sem reservas fica muito
vulnerável. Como aconteceu com a Argentina recentemente. As reservas são
acumuladas em dólar (ou euro) porque essas são as moedas que representam
economias Imperiais da Terra. O fato de que o dólar é a principal moeda do
mundo é o reflexo de que os EUA são a maior economia e a maior potência militar
do mundo. Os EUA não precisam ter reservas internacionais, pois o seu próprio
dinheiro é, ao mesmo tempo, a principal moeda de composição de reservas
internacionais.
Como poderia se esperar, o Império
Americano tem muita consciência dessa vantagem, sabe que grande parte de sua
hegemonia política e econômica se explica por essa grande vantagem monetária.
Tanto é verdade que um dos elementos fundamentais na decisão para o golpe de
2016, foi a determinação dos países que compõem o BRICS, de substituir o dólar
como moeda de comércio entre os países do bloco, pelas próprias moedas (Real,
Renmimbi, Rublo, etc.). Quando o Bloco tomou essa decisão, mais a de fundar um
banco para substituir o FMI no financiamento de países em dificuldades (atual
banco dos BRICS), o Império não teve dúvidas em dar o golpe. O que destituiu
Dilma Rousseff e colocou Lula na cadeia foram coisas deste tipo, que ameaçaram
diretamente os interesses financeiros estadunidenses mundo afora.
A fuga de capitais, neste momento, é
fácil de entender. Os capitais internacionais vêm para o Brasil para ganhar
dinheiro. O Brasil sempre foi uma “galinha dos ovos de ouro” para os países
ricos, de todas as maneiras possíveis: mão de obra barata, matéria prima
abundante e barata, taxas de juros nas alturas, benefícios fiscais, empresas
públicas vendidas na bacia das almas, etc. Mas as condições mudaram. Há uma
crise global inusitada, o Brasil está se desmanchando, com a maior crise da
história, o mercado consumidor interno está sendo liquidado, o meio ambiente
está sendo destruído. Aumentaram, portanto, os riscos de se investir no país, e
os capitais retornam para mercados mais seguros, normalmente os EUA. Um outro
aspecto deve ser considerado. O Brasil durante muito tempo foi o maior paraíso
da terra para os especuladores, com as maiores taxas de juros do planeta. Isso
mudou. As taxas continuam altas, porém o Brasil está na 16ª posição em termos
reais, com -0,81% em setembro. Estes são os menores juros básicos da história.
O problema da fuga de capitais surgiu
num momento em que a crise se alastra em várias frentes no Brasil: mais grave
recessão da história, aumento das desigualdades sociais, taxa de desocupação de
14,3 %, aumento da pobreza e da fome. Em função do golpe de Estado, a economia
brasileira é um organismo doente. Por exemplo, após muitos anos, o Brasil
caminha para sair do ranking dos 10 maiores países industriais do mundo.
Decorrência direta de um processo mais profundo de desindustrialização. Se
verifica também uma redução significativa do mercado consumidor interno, com o
achatamento da renda e a manutenção das altíssimas taxas de desemprego. O país
tem mais de 14 milhões de pessoas desocupadas e a população subutilizada na
força de trabalho (trabalhadores desocupados e subocupados por insuficiência de
horas trabalhadas) atingiu o maior número da série histórica da PNAD: 27
milhões.
Neste quadro de explosão do desemprego
e da informalidade, o resultado é uma grande instabilidade na economia e na
sociedade, o que certamente contribui para a fuga de capitais, que se deslocam
para países onde a estabilidade social e política sejam superiores, normalmente
o centro capitalista mundial. O capital não tem alma, ele vai atrás de
valorização até no inferno. Esses grandes especuladores (que estão saindo do
Brasil) têm grande sede de lucros e pernas longas. Têm também informações
privilegiadas, as quais nós, meros vendedores da força de trabalho, não temos
acesso.
A atual fuga de capitais se tornou
ainda mais problemática com a crise na Argentina. O país vizinho declarou
moratória em 05 de abril deste ano. A Argentina é a terceira maior economia da
América Latina, 33% de sua população em situação de pobreza (alguns falam em
50%) e tem uma inflação anual superior a 50%. A dívida pública da Argentina
está em 90% do PIB. A dívida pública externa equivale praticamente à produção
de bens e serviços de um ano do país, US$ 323 bilhões. US$ 44 bilhões vencem em
2022 e 2023. É uma hipoteca impossível de pagar.
Há uma pregação, aberta ou velada, dos
grandes meios de comunicação e seus “analistas” de economia, que se o país for
muito entreguista, tirar direitos ao máximo do povo, atacar as organizações dos
trabalhadores, destruir previdência, entregar as estatais, os investimentos
estrangeiros virão para o país. O momento atual, mais uma vez, desmonta essa
teoria. A maior fuga de capitais da história do Brasil está ocorrendo durante o
governo mais lacaio e entreguista da história. Esta fuga de capitais, em pleno
governo Bolsonaro, é a comprovação de que subserviência, empreguismo, desprezo
ao povo, desprezo ao país, não atrai capital algum. Destruição de instrumentos
públicos de intervenção estratégica do Estado e a desmontagem das estruturas de
atendimento à população, ao afetar a estabilidade social do país, impactam
também o humor dos especuladores.
As duas formas de capitais que vêm para
o pais – recursos aplicados no mercado financeiro (ações, renda fixa e fundos);
e IDP (investimento direto no país, comprando ações ou como empréstimos Inter
companhias), vêm em busca de lucros. Se direcionado ao mercado financeiro é
especulativo por definição; se vem como investimento direto é também para obter
taxa de valorização acima do que conseguem nos seus países de origem. Desde
sempre no Brasil, e deve ser assim em todos os países subdesenvolvidos, há uma
pregação bíblica de que o país deve fazer de tudo para atrair capitais
internacionais. Mas não é assim: os recursos que vêm para o mercado financeiro
são para faturar lucro financeiro, não tirar o país do atraso. O investimento
direto no país, por sua vez, significa que as multinacionais irão aumentar a
sua remessa de lucros no futuro.
O movimento de fuga de capitais tende a
provocar um “efeito manada”, ou seja, a fuga de capitais leva a desvalorizações
das moedas dos países atrasados, o que, por sua vez, leva a mais fuga de
capitais. Esses países estão colocando suas economias cada vez mais a serviço
do imperialismo, o que deixa as economias bastante fragilizadas e a mercê
de capitais especulativos.
O pano de fundo da fuga de capitais é o
fato de que a economia brasileira caminha para uma crise ainda maior do que a
atual. A dívida pública está se aproximando de 100% do PIB. A dívida de curto
prazo aumentou extraordinariamente, com risco de ultrapassar R$ 1 trilhão o que
pode colocar o Estado em uma situação falimentar. Nessa conjuntura, será muito
difícil manter o teto de gastos, aprovado no governo Temer em 2016 (Emenda
Constitucional 95). Toda essa situação financeira explosiva é agravada pela
escalada do desemprego e da pobreza, que também contêm grande quantidade de
nitroglicerina pura.
*Economista 16.10.2020.
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