Possível derrota de Trump deixará órfã a política externa indigente de Ernesto Araújo. País desperdiçará, além disso, enorme oportunidade de ser contraponto às políticas agressivas que Biden provavelmente manterá
PorMarcelo Zero
Emerso de brumas medievais, nosso ponderado chanceler declarou, na recente formatura do Instituto Rio Branco, que o Brasil é pária mundial e que deve ostentar essa honrosa condição como uma medalha.
Ficamos um tanto surpresos.
Ignorantes que somos dos tortuosos silogismos do tomismo diplomático, que hoje domina corações e mentes da alta cúpula do Itamaraty, pensávamos que o objetivo maior da política externa, de qualquer política externa, era o de manter boas relações com todos os países e fortalecer o prestígio e o protagonismo de um Estado no cenário mundial.
Estávamos redondamente enganados. Ou melhor, estávamos “plenamente” equivocados.
Ensina-nos o chanceler pré-iluminista que a finalidade principal da política externa brasileira é o isolamento. Assim, a boa política externa seria uma antipolítica externa.
Não entendem essa aparente contradição aqueles que não estão acostumados com o arguto e percuciente cérebro de cinzenta matéria e sombrio espírito do nosso chanceler.
Na realidade, a antipolítica externa de isolamento e desprestígio faz pleno sentido, no contexto do governo Bolsonaro.
Afinal, esse é o governo das antipolíticas.
Tome-se o exemplo da política ambiental. Os incautos diriam que o objetivo de tal política seria defender o equilíbrio ambiental, combater as mudanças climáticas e promover o desenvolvimento sustentável.
Não é.
No Brasil, a política ambiental tem como claro objetivo promover ativamente os desequilíbrios ambientais e a emissão de gases do efeito-estufa, bem como deixar queimar biomas inteiros e “abrir a porteira” para a vitoriosa passagem de atividades predatórias.
Trata-se, portanto, de uma antipolítica ambiental, de enorme sucesso internacional, como a antipolítica externa.
O mesmo pode ser dito da política de saúde.
Os ingênuos afirmariam que a política de saúde teria de ter como finalidades o combate efetivo à covid-19, com base em evidências científicas, o fortalecimento do SUS, o reerguimento do Mais Médicos, do Farmácia Popular etc.
Não é. O objetivo da política de saúde do governo Bolsonaro é promover a disseminação do vírus, tratar a doença com drogas sem comprovação científica, fragilizar o SUS e acabar com todos os programas destinados a prover tratamentos e remédios para os mais pobres. Assim, trata-se de antipolítica de saúde, destinada a promover doença.
Coisa semelhante pode-se afirmar da política de direitos humanos, da política social, da política de educação etc. Este é um governo de desconstrução; não de construção.
Estamos, portanto, muito confortáveis, orgulhosos e satisfeitos com nossa posição de pária.
Preocupa, contudo, nossa futura condição de órfão.
Nossa antipolítica externa é consequência direta da aliança com Trump e a extrema-direita norte-americana.
Entretanto, o novo Messias do Ocidente deverá perder as eleições para Biden, que lidera não apenas no geral, mas na maioria dos estados-chave.
Este ano de 2020 não será igual a 2016, quando os institutos erraram nas amostragens e houve muito absenteísmo. Há grande mobilização contra Trump e as pesquisas estão levando em consideração, na devida proporção, o voto dos homens brancos sem título universitário, segmento no qual o Messias é mais forte, sabe-se lá o porquê.
A perda do papai Trump, a quem Bolsonaro devota incondicional amor filial, tornará órfão o capitão.
As relações do governo Bolsonaro com um futuro governo Biden não deverão ser muito amistosas, por motivos óbvios.
Haverá pressões severas no campo ambiental e no campo dos direitos humanos. O apoio político escancarado e impudico do chanceler, do presidente e de seus filhos a Trump não contribuirá para boas relações bilaterais.
Não obstante, do ponto de vista geopolítico, não haverá mudanças substantivas na política dos EUA para a América Latina e o Brasil.
A doutrina atual de segurança nacional dos EUA, que colocou a grande disputa pelo poder mundial com China, Rússia e aliados no centro da geopolítica norte-americana, foi concebida na administração Obama e lançada em 2010.
Em 2017, Trump confirmou, em linhas gerais, tal política, retirando apenas as mudanças climáticas como uma das grandes ameaças à segurança dos EUA.
Haverá, portanto, a continuidade dessa política. Em política externa, nada mais semelhante a um republicano do que um democrata. À exceção de Sanders, é claro. Mas Biden não é Sanders.
Biden continuará a pressionar os países da nossa região a combaterem a influência de China e Rússia no subcontinente. É possível até que essa pressão aumente.
Regimes como o de Maduro, na Venezuela, a quem Biden chama abertamente de “ditador”, continuarão a ser vistos como ameaças aos interesses norte-americanos e, como tal, estarão sujeitos a sanções e pressões de toda ordem, inclusive militar. Em sua campanha presidencial na Flórida, estado-chave para as eleições, Biden prometeu aos anticastristas continuar a pressionar a “ditadura cubana”.
Assim, até mesmo a détente de Obama em Cuba poderá ser comprometida pela nova administração democrata.
Para piorar o cenário, Biden deverá ser mais agressivo do que Trump em relação à Rússia e à Coreia do Norte, por exemplo. Seus laços com a Ucrânia poderão levá-lo a intervir mais fortemente num conflito geoestratégico que tem potencial para comprometer a segurança do mundo.
O Brasil, caso ainda tivesse uma política externa, poderia contribuir para limitar a pressão dos EUA sobre a região, voltando a apostar na integração regional, na reconstrução do Mercosul, da Unasul e da Celac, na não-intervenção, na solução pacífica dos conflitos etc.
Párias e órfãos, porém, pouco ou nada podem fazer. Vira-latas tampouco.
Uma coisa é certa: com Trump ou com Biden continuaremos a passar vergonha.
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