por Noam Chomsky
Publicado 23/09/2020 às 21:18 - Atualizado 23/09/2020 às
21:26

Noam Chomsky, no Progressive International // Tradução de Simone
Paz
Discurso de abertura do membro do Conselho durante a
cúpula inaugural da Internacional Progressista, em setembro de 2020.
Estamos reunidos num momento extraordinário, um momento que
é, de fato, único na história da humanidade, um momento de mau agouro e, ao
mesmo tempo, repleto de esperança por um futuro melhor. A Internacional
Progressista (IP) tem um papel crucial a desempenhar: determinar o rumo que a
história vai tomar.
Nos encontramos num momento de confluência de crises de
extraordinária gravidade, com o destino do experimento humano literalmente em
risco. Nas próximas semanas, os problemas atingirão o ponto crítico nas duas
maiores potências imperiais da era moderna.
A decadente Grã Bretanha, depois de ter declarado
publicamente que rejeita o direito internacional, está à beira de um rompimento
agudo com a Europa, a caminho de se tornar um satélite americano, ainda mais do
que já é. Mas, é claro, o mais importante para o futuro é o que acontece na
hegemonia global — diminuída por Trump, mas ainda com poder avassalador e
vantagens incomparáveis. Seu destino, e com ele o destino do mundo, pode ser
determinado em novembro.
Não é de estranhar que o resto do mundo esteja preocupado, quando
não horrorizado. Seria difícil achar um comentarista mais sóbrio e respeitado
do que Martin Wolf, do London Financial Times. Ele escreveu que o
Ocidente está enfrentando uma crise grave e que, se Trump for reeleito, “será
terminal (ou o fim)”. Palavras fortes, e isso que ele nem se refere às grandes
crises que a humanidade enfrenta.
Wolf se refere à ordem global, uma questão crítica, embora
não na escala de crises que nos ameaçam com consequências muito mais sérias, as
crises que empurram os ponteiros do famoso Relógio do Juízo Final em direção à
meia-noite — rumo à extinção.
O conceito de “terminal” de Wolf não é novo no discurso público. Há 75 anos vivemos à sombra dele, desde que soubemos, em um inesquecível dia de agosto, que a inteligência humana havia criado os meios que em breve produziriam a capacidade de destruição terminal. Isso já foi esmagador, mas ainda havia mais. Na época, não se sabia que a humanidade estava entrando em uma nova era geológica, o Antropoceno, em que as atividades humanas estão expropriando o meio ambiente de tal forma que agora também ele se aproxima da destruição terminal.
Os ponteiros do Relógio do Juízo Final foram estabelecidos
pouco depois das bombas atômicas terem sido usadas num paroxismo de massacre
desnecessário. Os ponteiros vêm oscilando desde então, à medida em que as
circunstâncias globais tem evoluído. Para cada ano de Trump no poder, os
ponteiros chegaram mais perto da meia-noite. No passado mês de janeiro,
analistas pararam de falar em minutos, e passaram a utilizar os segundos: cem
segundos para a meia-noite. Eles citaram as mesmas crises de antes: as
crescentes ameaças de guerra nuclear e catástrofe ambiental, e a deterioração
da democracia.
À primeira vista, essa última pode parecer fora de contexto,
mas não está. A deterioração da democracia se encaixa nesse trio sombrio. A
única esperança de escapar das duas ameaças de extinção é uma democracia
vibrante na qual cidadãos interessados e informados estejam totalmente
envolvidos na deliberação, formulação de políticas e ação direta.
Isso foi em janeiro passado. Desde então, o presidente Trump
ampliou as três ameaças, numa conquista nada trivial. Continuou a demolir o
regime de controle de armas, que oferecia certa proteção contra a ameaça da
guerra nuclear, enquanto pressiona o desenvolvimento de novas armas ainda mais
mortais, para deleite da indústria militar. Em seu dedicado compromisso de
destruir o meio ambiente que sustenta a vida, Trump abriu vastas novas áreas
para perfuração, incluindo a última grande reserva natural. Enquanto isso, seus
capangas estão sistematicamente desmantelando o sistema regulatório que de
alguma maneira amenizava o impacto destrutivo dos combustíveis fósseis e
protegia a população de produtos químicos tóxicos e poluição, uma maldição que
agora é duplamente mortal durante uma grave epidemia respiratória.
Trump também liderou sua própria campanha para acabar com a
democracia. Por lei, as nomeações presidenciais são sujeitas à confirmação do
Senado. Trump foge desse inconveniente deixando as vagas abertas e, em vez
disso, preenchendo os cargos com “nomeações temporárias” que atendem à sua
vontade — e se não o fizerem com lealdade suficiente, são demitidos. Ele acabou
com qualquer voz independente dentro do Executivo. Só permanecem os
bajuladores. Há muito tempo, o Congresso estabeleceu Inspetores-Gerais para monitorar
o desempenho do Poder Executivo. Eles começaram a desvendar o pântano de
corrupção que Trump criou em Washington, mas o presidente cuidou rapidamente
despediu-os para preservar sua imagem. Não sobrou quase ninguém para espiar o
que estava acontecendo no Senado Republicano, já que Trump havia controlado
todo mundo; com isso, só restam alguns lampejos de integridade, aterrorizados e
imobilizados pela base popular que Trump articulou.
Este ataque à democracia é apenas o começo. O último passo
de Trump será o de avisar que ele não pode deixar o cargo enquanto não estiver
satisfeito com o resultado da eleição de novembro. A ameaça é levada muito a
sério nos altos escalões. Para citar apenas alguns exemplos, dois comandantes
militares aposentados, altamente respeitados, divulgaram uma carta aberta ao
presidente do Estado-Maior Conjunto, General Milley, reforçando sua
responsabilidade constitucional de enviar o exército para tirar à força um
“presidente sem lei” que se recuse a deixar o cargo após derrota eleitoral,
convocando em sua defesa os tipos de unidades paramilitares que despachou para
Portland, Oregon, a fim de aterrorizar a população por causa da forte objeção
das autoridades eleitas.
Muitas autoridades consideram o aviso realista, entre eles o
Projeto de Integridade de Transição de alto nível, que acaba de relatar os
resultados do “jogo de guerra” que vem conduzindo, sobre os possíveis
resultados das eleições de novembro. Os membros do projeto são “alguns dos mais
destacados republicanos, democratas, funcionários públicos, especialistas em
mídia, pesquisadores e estrategistas”, explica o codiretor do projeto, que
incluiu figuras proeminentes de ambos os partidos. Em qualquer cenário
plausível além de uma clara vitória de Trump, os jogos levaram a uma espécie de
guerra civil, com Trump escolhendo encerrar “o experimento americano”.
Novamente, palavras fortes, nunca antes ditas por vozes
sóbrias do mainstream. O próprio fato de que tais pensamentos surjam já é
bastante ameaçador. Eles não estão sozinhos. E dado o incomparável poder dos
EUA, o que está em risco é muito mais do que a “experiência americana”.
Na frequentemente conturbada história da democracia
parlamentar, nunca aconteceu nada parecido a isso. Nos anos recentes, Richard
Nixon — longe de ser a pessoa mais encantadora da história presidencial — tinha
boas razões para acreditar que havia perdido a eleição de 1960 apenas por causa
da manipulação criminosa realizada por operativos democratas. Ele não contestou
os resultados, privilegiando o bem-estar do país antes que sua ambição pessoal.
Albert Gore fez o mesmo em 2000. Não é o que acontece hoje.
Trilhar novos caminhos no desprezo ao bem-estar do país não
é suficiente para o megalomaníaco que domina o mundo. Trump também anunciou,
mais uma vez, que pode desconsiderar a Constituição e “negociar” um terceiro
mandato, se ele resolver que tem direito ao mesmo.
Alguns optam por rir de tudo isso como se se tratasse da
brincadeira de um bufão. Sob iminente risco, como a história nos mostra.
A sobrevivência da liberdade não é garantida por “barreiras de pergaminho”, advertia James Madison. Palavras no papel não são suficientes. Ela depende da expectativa de boa fé e decência comum, que foram estilhaçadas por Trump, juntamente com seu parceiro de conspiração, o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, que transformou o “maior órgão deliberativo do mundo”, como ele se autodenomina, em uma piada patética. O Senado de McConnell se recusa até mesmo a considerar propostas legislativas. Sua prioridade é ser generoso com os ricos e empilhar o judiciário, de cima a baixo com jovens advogados de extrema direita que deveriam ser capazes de salvaguardar a agenda reacionária de Trump-McConnell por uma geração — sem importar o público deseja, nem o que o mundo precisa para sobreviver.
O infame serviço prestado aos ricos do partido Republicano
Trump-McConnell é bastante notável, até mesmo para os padrões neoliberais de
exaltação da ganância. Dois dos maiores especialistas em política tributária,
os economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, ilustram a situação: eles mostram
que em 2018, após a fraude fiscal que foi a única conquista legislativa de
Trump-McConnell, “pela primeira vez nos últimos cem anos, bilionários pagaram
menos [em impostos] do que trabalhadores do aço, professores e aposentados”,
apagando “um século de história fiscal”. “Em 2018, pela primeira vez na
história moderna dos Estados Unidos, o capital foi tributado menos do que o
trabalho” — uma vitória verdadeiramente impressionante da guerra de classes,
chamada de “liberdade” na doutrina hegemônica.
O Relógio do Juízo Final foi definido em janeiro passado,
antes de que compreendêssemos a magnitude da pandemia. Cedo ou tarde, a
humanidade se recuperará da pandemia, a um custo terrível. É um custo
desnecessário. Vemos isso claramente a partir da experiência de países que
tomaram medidas decisivas quando a China forneceu ao mundo as informações
relevantes sobre o vírus em 10 de janeiro. Entre eles, alguns do Leste-Sudeste
Asiático e da Oceania; enquanto isso, outros, se arrastando na retaguarda,
geraram desastres absolutos — evidentemente, os EUA, seguidos pelo Brasil de
Bolsonaro e pela Índia de Nahendra Modi.
Apesar da má-fé ou indiferença de alguns líderes políticos,
no final das contas haverá algum tipo de recuperação da pandemia. Não iremos,
no entanto, nos recuperar do derretimento dos glaciares polares; ou da alta de
explosões de incêndios árticos, que liberam enormes quantidades de gases de
efeito estufa na atmosfera; ou de outros de nossos passos, na marcha rumo à
catástrofe.
Quando os cientistas mais proeminentes, especialistas em
clima, nos alertam para “entrar em pânico já!”, eles não estão sendo
alarmistas. Não temos tempo a perder. Poucos estão fazendo o suficiente e, pior
ainda, o mundo é amaldiçoado por líderes que não apenas se recusam a tomar medidas
suficientes, mas estão deliberadamente acelerando a corrida para o desastre. A
nocividade da Casa Branca está de longe na liderança dessa monstruosa
criminalidade.
Não são apenas os governos. O mesmo vale para as indústrias
de combustíveis fósseis, os grandes bancos que as financiam e outras indústrias
que lucram com ações que colocam a “sobrevivência da humanidade” em sério
risco, nas palavras de um memorando interno que vazou do maior banco da
América.
A humanidade não sobreviverá por muito tempo a essa
crueldade institucional. Os meios para administrar a crise estão disponíveis.
Mas não por muito tempo. Uma das principais tarefas da Internacional
Progressista é garantir que todos entremos em pânico agora — e que possamos
agir de acordo.
As crises que enfrentamos neste momento único da história
humana são, naturalmente, internacionais. A catástrofe ambiental, a guerra
nuclear e a pandemia não têm fronteiras. E de uma forma menos clara, o mesmo se
aplica ao o terceiro dos demônios que perseguem a terra e conduzem o ponteiro
dos segundos do relógio do Juízo Final para a meia-noite: a deterioração da
democracia. O caráter internacional dessa praga fica evidente quando examinamos
suas origens.
As circunstâncias variam, mas existem algumas raízes em comum.
Grande parte da perversidade se remonta ao ataque neoliberal à população
mundial, em vigor há 40 anos.
O caráter básico do ataque foi capturado nos pronunciamentos
iniciais de suas figuras mais proeminentes. Ronald Reagan declarou em seu
discurso inaugural que o governo é o problema, não a solução — o que ele queria
dizer é que as decisões devem ser transferidas dos governos, que estão pelo
menos parcialmente sob controle público, para o poder privado, que é
completamente inexplicável ao público, e cuja única responsabilidade é o
auto-enriquecimento, como proclamou o economista-chefe Milton Friedman. A outra
foi Margaret Thatcher, que nos ensinou que não existe sociedade, apenas um
mercado no qual as pessoas são lançadas para sobreviver da melhor maneira
possível, sem organizações que as capacitem a se defender contra sua
devastação.
Inconscientemente, sem dúvida, Thatcher estava parafraseando
Marx, que condenou os governantes autocráticos da sua época por transformarem a
população em um “saco de batatas”, indefeso contra o poder concentrado.
Com consistência admirável, os governos Reagan e Thatcher
agiram imediatamente para destruir o movimento trabalhista, principal obstáculo
ao severo governo de classe dos senhores da economia. Ao fazer isso, eles adotavam
os princípios centrais do neoliberalismo desde seus primeiros dias no período
entre guerras, em Viena, onde o fundador e santo padroeiro do movimento, Ludwig
von Mises, mal conseguiu controlar sua alegria quando o governo protofascista
destruiu violentamente o excelente sistema social da democracia austríaca e os
desprezíveis sindicatos que estavam interferindo na economia, ao defender os
direitos dos trabalhadores. Como von Mises já explicava em seu clássico Liberalismo (1927),
cinco anos depois que Mussolini iniciou seu brutal regime, “não se podia negar
que o fascismo e movimentos semelhantes que visam o estabelecimento de
ditaduras estão cheios das melhores intenções e que sua intervenção salvou,
naquele momento, a civilização europeia. O mérito que o fascismo conquistou
para si continuará a viver eternamente na história” — mesmo sendo apenas
temporário, como nos garantiu. Os camisas-negras irão para casa após terem
realizado seu bom trabalho.
Os mesmos princípios inspiraram um apoio neoliberal entusiástico
à horrível ditadura de Pinochet. Alguns anos depois, eles foram postos em
prática na arena global de uma forma diferente, sob a liderança dos Estados
Unidos e do Reino Unido.
E assim continua, à medida em que a doutrina neoliberal se
consolida.
Como o ataque estava apenas começando a tomar forma, em
1978, o presidente do United Auto Workers, Doug Fraser, demitiu-se de um comitê
de gestão trabalhista que foi criado pelo governo Carter, escandalizado com o
fato dos líderes empresariais terem “optado por travar uma guerra de classes
unilateral neste país — uma guerra contra os trabalhadores, os desempregados,
os pobres, as minorias, os muito jovens e os muito velhos, e até mesmo muitos
na classe média de nossa sociedade”, e por terem “quebrado e descartado o pacto
frágil e não-escrito que existia anteriormente, durante um período de
crescimento e progresso” — no período de colaboração de classes sob o
capitalismo organizado.
Sua compreensão de como o mundo funciona foi um tanto tardia
— na verdade, tarde demais para se defender da amarga guerra de classes lançada
por líderes empresariais que logo receberam total autonomia de governos
cúmplices. As consequências disso em grande parte do planeta não são nenhuma
surpresa: raiva generalizada, ressentimento, desprezo pelas instituições
políticas, enquanto as principais instituições econômicas são ocultadas pela
propaganda eficaz. Tudo isso proporciona um território fértil para demagogos
que fingem ser seus salvadores enquanto te apunhalam pelas costas, enquanto
desviam a culpa para bodes expiatórios: imigrantes, negros, a China, ou quem
quer que se encaixe em preconceitos de longa data.
Retornando às grandes crises que enfrentamos neste momento
histórico, todas são globais e duas Internacionais estão se formando para
enfrentá-las. Uma está sendo inaugurada hoje: a Internacional Progressista. A
outra está tomando forma sob a liderança da Casa Branca de Trump, uma
Internacional Reacionária que compreende os Estados mais reacionários do mundo.
No hemisfério ocidental, essa Internacional Reacionária
inclui o Brasil de Bolsonaro e alguns outros. No Oriente Médio, os principais
membros são as ditaduras familiares do Golfo; a ditadura egípcia de al-Sisi,
talvez a pior da amarga história do Egito; e Israel, que há muito descartou
suas origens social-democratas e se deslocou para a direita — no efeito já
previsto da ocupação prolongada e brutal. Os acordos atuais entre Israel e as
ditaduras árabes, formalizando relações tácitas de longa data, são um passo
significativo para solidificar a base da Internacional Reacionária no Oriente
Médio. Os palestinos são humilhados e espancados, destino próprio de quem não
tem poder e não rasteja devidamente aos pés dos mestres naturais.
Ao Leste, um candidato natural é a Índia, onde o
primeiro-ministro Modi está destruindo a democracia secular do país e
transformando-o em um estado nacionalista hindu e racista, enquanto acaba com a
Caxemira. O contingente europeu inclui a “democracia iliberal” de Orban na
Hungria e elementos semelhantes em outros lugares. A Internacional também tem
forte apoio das instituições econômicas globais dominantes.
As duas internacionais compreendem boa parte do mundo, uma a
nível de estados, a outra, a nível de movimentos populares. Cada uma representa
proeminentemente forças sociais muito mais amplas, com imagens do mundo muito
conflitantes, que devem emergir da atual pandemia. Uma força está trabalhando
incansavelmente para construir uma versão mais dura do sistema global
neoliberal do qual se beneficiariam enormemente, com vigilância e controle mais
intensos. O outro, anseia por um mundo de justiça e paz, com energias e
recursos direcionados para atender às necessidades humanas, e não às demandas
de uma pequena minoria. É uma espécie de luta de classes em escala global, com
muitas facetas e interações complexas.
Não é exagerado concluir que o destino do experimento humano
depende do resultado dessa luta.
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